Canto do Inácio

Sunday, September 24, 2006

Viagem com Vanessa, ao paraíso

O grave problema do cinema francês atual, todo mundo sabe, é a falta de assunto combinada com excesso de filosofia. Um mal de que não sofre "Boda Branca" (Eurochannel, 22h), realizado por Jean Claude Brisseau em 1989, embora seu protagonista seja precisamente um professor de filosofia que se apaixona por uma jovem aluna, Vanessa Paradis.
Nem sempre Vanessa será para ele o paraíso. Ou antes, poderá ser um paraíso infernal, nesse filme que evoca o universo do italiano Valerio Zurlini. "Boda Branca" tem essa vitalidade que faz falta com tanta frequência aos filmes europeus, que não raro trocam as coisas da existência pela abstração, que raramente emplaca no cinema. E isso a nouvelle vague ensinou bem ensinado. (IA)

"Boda Branca" transborda de vida

Muita gente reclama que o cinema francês "é chato". Às vezes se diz isso por quem não compreende o que está na tela.
A maior parte das vezes, no entanto, é mesmo verdade. A Europa é uma cultura antiga, em parte desgastada. E, nesse desgaste, a França optou por uma cerebralidade que por vezes é vizinha da insânia.
Mas veja "Boda Branca". É pelo menos uma notável exceção, e não só pela presença da bela Vanessa Paradis.
Este filme de 1889, de Jean-Claude Brisseau, está ancorado na vida, mais do que nas idéias. Ou, antes, estas decorrem daquela na história (em si banal) do professor que se apaixona por uma aluna. (IA)

Monday, September 18, 2006

Cinemascope: a contemplação dos espetáculos
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Entendemos as superproduções em cinemascope como uma forma de Hollywood se defender dos avanços da televisão em seu território - o que é indubitável.
Improvável, contudo, é que este seja o único sentido do uso da tela larga e do gosto pelos superespetáculos entre os anos 50 e 60. Nesse período, os europeus haviam assumido as rédeas do cinema, tomando o tempo como dimensão essencial.
O cinema não era mais apenas imagens em movimento. Era a imagem do tempo. Isso é perceptível no neo-realismo, especialmente em Rossellini, e depois em Antonioni - entre tantos outros.
Ora, na América, o cinema continuava sendo movimento. Mesmo em Hawks, o mais ousado dos cineastas americanos em todos os tempos, o tempo decorre da ação. A superprodução em cinemascope é que, com sua grandiosidade, terá o dom de libertar o tempo. Hoje temos a oportunidade de observar, entre outras coisas, o enterro de Marco Aurélio em "A Queda do Império Romano". Quantos minutos dura? Há os personagens e a figuração. Há Cômodo e Lívio, os possíveis sucessores, há Sofia Loren de negro e há o vento que os flocos de neve tornam visível. Há as panorâmicas magníficas de Anthony Mann - quem melhor do que ele descortina a paisagem com o movimento panorâmico?
Como essas panorâmicas incidiam sobre grandes exércitos em movimento ou sobre cenários magníficos, a dimensão temporal acaba se introduzindo e, insidiosamente, tomando conta do filme. Não só deste, é claro: tanta grandiosidade -cenários, figurantes etc.- exigem ser vistos, e isso não se faz no vapt-vupt.
Assim, talvez, o tempo acaba se instalando como dimensão essencial no cinema americano, no mais insuspeito, tornando-se fator de modernização, libertando os demais cineastas das amarras da ação (por incrível que pareça) e permitindo a um público enorme o prazer da contemplação.

Friday, September 15, 2006

O que faz uma obra-prima
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Não conheço a versão que o Cinemax Prime exibe de "Juventude Transviada" (13h15), de Nicholas Ray.
Todos sabem que é um filme básico sobre rebeldia juvenil nos anos 50, que tem James Dean e Natalie Wood no elenco etc.
O fato é que os filmes de Ray feitos em cinemascope, como este, podem ser obras-primas, quando vistas em cinemascope. E podem ser coisas apenas medianas quando vistas na chamada "tela cheia", que corta as laterais do enquadramento.
Isso nos ajuda a compreender que um filme não é apenas uma história e atores. Um grande filme se faz também de ritmo, combinações de cores, e luz. E, sobretudo, de enquadramento: a escolha de um cineasta sobre o que entra ou não na imagem e a disposição precisa dos elementos.

Solidão noir

Na Hollywood do filme noir, ninguém era inocente.A inocência parece que havia sido banida do gênero policial após o final da guerra. A essa desconfiança, Nicholas Ray acrescenta ainda a solidão do roteirista acusado de assassinato, em "No Silêncio da Noite".
Aqui, Humphrey Bogart, no papel do roteirista, está longe de ser o detetive determinado de outros filmes. É a caça, não o caçador.
Mas é ao dar-lhe esse tipo de papel que Ray estabelece as diferenças de seu cinema. À culpabilidade inerente a todo suspeito de filme noir, acrescenta essa densidade peculiar, torturada, de Bogart, que pode se exprimir também na atitude sarcástica do roteirista.
(IA)

De Palma faz enterro do cinema clássico
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

É muito forte a tentação de dizer que o diretor e roteirista Brian de Palma não passa de um imitador reles de Alfred Hitchcock, quando se revê (ou se vê pela primeira vez) "Vestida para Matar", produção de 1980 estrelada por Michael Caine.
Afinal, lá estão "Psicose", "Um Corpo que Cai", "Janela Indiscreta", para lembrar o imediatamente lembrável, devidamente decalcados. Mas, olhando bem, não é Hitchcock. Tudo isso é outra coisa.
É como se estivéssemos diante de uma tapeçaria, onde conhecemos cada motivo, mas o conjunto é inteiramente diferente. Nos filmes citados acima, temos um inventor do cinema no momento em que já desconfia do cinema -e, a rigor, torna-se um moderno.
Em "Vestida para Matar", de Palma talvez pensasse, já, em um funeral do cinema clássico, essa arte sedutora e autoritária que, à maneira de um travesti ou, talvez, de um psicanalista, interpreta a vida por nós e/ou se encarrega de dirigir o nosso olhar.

"Fantasmas" incomoda por causa da aridez
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Não é fácil entender por que a crítica americana destrói determinados filmes. Para além de suas qualidades e defeitos, são em geral filmes corrosivos -como o "Showgirls", de Verhoeven- que expõem um certo "dark side" da sociedade americana.
Nesse sentido, a unanimidade que, na imprensa, sucedeu o 11 de Setembro já se encontrava na crítica de cinema dos EUA mesmo antes de as torres gêmeas serem atacadas.
Outro que não costuma ter boa sorte com a crítica americana é John Carpenter. Em "Fantasmas de Marte", ele desloca a ação para os cafundós do século 22. E para Marte, claro.
Há aridez. Existe ainda a questão da transferência de um prisioneiro e a descoberta de uma cidade morta. Tudo incomoda, é verdade. E a crítica rejeita o filme.
É verdade também que o cinema atual não é feito para incomodar: nada deve atrapalhar nossa diversão e/ou lembrar que existe mundo real. A crítica segue os desígnios da indústria.

Tuesday, September 12, 2006

Câmera xereta ativa tensão em "O Informante"
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"O Informante" (HBO Plus, 22h) é uma história da indústria do tabaco. Ou antes, do combate à indústria do tabaco. Aqui, Al Pacino faz o repórter do programa de investigação jornalística "60 Minutos", da emissora norte-americana CBS. Russell Crowe é o informante, aquele que fornece os detalhes sobre calhordices dos executivos dessa indústria.
As coisas não se passam sem tensão, e boa parte dela devemos, é verdade, à maneira como o diretor Michael Mann conduz sua câmera: entrona, instável, incisiva, como se o próprio das câmeras de cinema fosse justamente penetrar territórios resistentes.
Existem ainda as tensões no interior da rede de televisão, já que, entre recolher o material e colocá-lo no ar, existe o risco de uns tantos processos.
Um bom filme, sem dúvida, embora muito inferior a "Johnny Guitar" (Telecine Cult, amanhã, às 13h10), que Nicholas Ray dirigiu em 1954. Por enquanto, não consigo ver em Mann um novo Raoul Walsh ou coisa assim.

Jovial, Oliveira ri da vaidade humana
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em seus filmes, Manoel de Oliveira já fez drama e comédia, já viajou no tempo, percorreu a história do Ocidente e deixou-se levar pela melancolia portuguesa, enveredou pelo teatro e pela poesia. A cada novo filme não sabemos o que esperar. E ele sempre termina por surpreender.
No caso de "Espelho Mágico" as surpresas se acumulam ao longo da trama. Tudo começa em tom grave no interior de um presídio onde, basicamente, se discute filosofia. O diretor, que cultiva cactos, gosta de palestrar com o suave presidiário Luciano (Ricardo Trepa). Este, por sua vez, aprecia as conversas com o vingativo Américo.
Parece que vamos assistir algo à maneira de Robert Bresson. Subitamente, porém, o curso é desviado: Luciano sai da cadeia e é levado pelo irmão a trabalhar na casa de Alfreda (Leonor Silveira), uma milionária que dedica o essencial de seu tempo à fé e a receber conselhos de teólogos como o professor Heschel (Michel Piccoli) e o padre Clodel (Lima Duarte).
É do primeiro que vem a teoria de que Nossa Senhora poderia muito bem ser uma mulher rica como Alfredo. Tal idéia embala o sonho maior da carola: receber uma aparição da Virgem Maria. Boa teoria: se ela apareceu até para uns pastorzinhos em Fátima antes, por que não para ela?
Aos poucos, enquanto cresce a obsessão de Alfreda, muda o registro do filme. E Oliveira parece contemplar sorrindo este mundo meio fora do tempo, onde a riqueza é só um atalho para o reino de Deus. Um mundo fútil, a rigor, e vaidoso, mas antes de tudo mimado: Alfreda quer ver a Virgem Maria assim como uma criança quer o brinquedo da vitrine ou seu marido quer financiar futuros músicos.
É então que aparece em cena Filipe Quinta (Luís Miguel Cintra), o falsário, velho conhecido da cadeia, a quem Luciano conta sobre as manias da patroa. Cínico, Filipe trata de transformar a obsessão em realidade e sai à cata de uma Virgem Maria, que encontra na pessoa de Vicenta (Leonor Baldaque).
O filme divide-se em três partes. A primeira, dedicada à cadeia; a segunda, à casa de Alfreda; a terceira, a Filipe Quinta. Nenhum desses três momentos narrativos se completa. Da primeira parte, restará Luciano, mas o diretor e Américo desaparecerão sem deixar rastro. Da segunda, restam Alfreda e o marido, mas desaparecem os padres, tão marcantes no início. Por fim, a própria Virgem de Filipe Quinta, se não desaparece, passa por uma espécie de desvio de função.
Se ri da fé vaidosa de sua rica carola -e, por extensão, da importância que certas pessoas dão a si mesmas-, Oliveira também ri da ortodoxia narrativa: ao truncar a história, ao abandonar certos fios, ele se desfaz das regras que oprimem o cinema tanto quanto podem oprimir os homens. Em troca, postula a liberdade, o prazer, o gosto pela amizade, pelos personagens que ali estão apenas porque os ama (ou aos seus atores, o que dá quase no mesmo). Não é só porque se passa de clichês que um homem é "sério".
Aos 97 anos, Manoel de Oliveira parece cada vez mais inventivo e moleque.

Friday, September 08, 2006

O anunciador da mulher moderna
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Diz Louis Skorecki, seguido por Godard, que, para Howard Hawks, não existia a oposição entre homem e mulher.
Deve ser. Tanto que, em "Jejum de Amor", ele inverte uma situação da peça original ("A Primeira Página") e, onde havia um editor-chefe e um repórter, passamos a ter um editor-chefe e uma repórter.
E mais: editor e repórter são recém-separados. Ela busca vida mais tranqüila ao lado de outro homem. Ele a chama para uma última cobertura: a de um homem que vai ser executado. Ela se joga apaixonadamente na história. Convenhamos, isso não é "coisa de mulher", ao menos não das de 1940. Hoje, seria bem diferente. O que faz olhar a coisa de outro modo: Hawks, anunciador da mulher moderna.

O gosto de Hellman pelos personagens silenciosos
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O que se espera de um faroeste não é bem o que "O Tiro Certo" nos dá. Talvez seja melhor, porque é mais surpreendente.
Lá está, de início, um caçador de recompensas, Warren Oates, atualmente com a cabeça a prêmio. Em sua vida aparecerá, portanto, outro caçador de recompensas, mais jovem, Jack Nicholson, e disposto a capturá-lo.
Tudo o que o filme é hoje se deve certamente a Jack Nicholson, então um jovem ator, vindo da escola Roger Corman de cinema econômico. Também de lá havia saído Monte Hellman, o diretor. Eles fizeram dois faroestes ao mesmo tempo, este e "A Vingança de um Pistoleiro", um pouco menos interessante.
De um faroeste espera-se, habitualmente, ação. De "O Tiro Certo" o que se obtém, a maior parte do tempo, é reflexão: dois homens silenciosos (aos quais virá se juntar Millie Perkins) percorrendo um caminho e traçando sua estratégia de combate.
Dessa substituição da ação pela reflexão, da conseqüente inflexão do tempo em detrimento da trajetória (ou antes, o tempo e a trajetória têm idêntica importância), não decorre uma perda de tensão pelo filme, mas o acréscimo de uma tensão que vem do filme, isto é, não do roteiro, mas da matéria do filme que se desenrola diante de nós (e cuja importância ficará mais clara no final da projeção).
O gosto de Monte Hellman por personagens silenciosos, ensimesmados, que não escondem nada, mas simplesmente são assim, ficou conhecido por nós em "Corrida sem Fim", que o próprio Telecine passou há alguns anos, onde dois amigos vivem de tirar rachas de estrada.
Como lá, em "O Tiro Certo" também chegamos ao fim da projeção nos perguntando o que aconteceu e por quê, mas com a certeza de termos passado por uma aventura em que a reflexão, os sentidos, a emoção deixam-se levar -quando se deixam- pelo pensamento extremamente original de Monte Hellman, um dos raros vanguardistas do cinema americano.

Thursday, September 07, 2006

Aos 50, melhor faroeste de Ford ganha edição especial
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Não é preciso esperar pela segunda cena para perceber que estamos diante de uma obra-prima. A porta que se abre para a paisagem árida, o interior da casa em contraluz, a mulher que avança até a varanda da casa, a paisagem que se torna cada vez mais vasta, mais imponente e na qual, aos poucos, se distingue a presença de um homem que se aproxima a cavalo.
Este plano de uma melancolia insuperável é o início de "Rastros de Ódio". Talvez seja o maior faroeste de todos os tempos, certamente é o melhor, o mais maduro, o mais complexo de John Ford -e ganha edição comemorativa de seus 50 anos.
Esta edição restaura o formato VistaVision. Na antiga versão, optou-se pela "tela cheia", o que adulterava os enquadramentos. Mas, fora do cinema, a mudança não é tão profunda. Ford não é um cineasta do enquadramento, e sim um contador de histórias imbatível.
A real diferença aqui vem do disco em que várias seqüências são analisadas por John Milius, Curtis Hanson e Martin Scorsese, comentando desde a primeira impressão -juvenil- que sentiram até as descobertas feitas já como profissionais.
"Rastros de Ódio" está no centro da produção de Ford. Alguém, no disco de extras, lembra que ele se sentia um pouco como o personagem de Ethan Hawke -solitário e sem lar, depois de fazer 140 filmes e ficar anos na guerra. Aventa-se, inclusive, que os modos duros e o jeito intratável de Hawke eram muito semelhantes aos do próprio Ford. É possível...
Mas o amargor de Hawke, seu caráter de herói detestável, vai além de possíveis identidades biográficas. O filme -sobre o homem que procura incansavelmente pela sobrinha, seqüestrada por índios- toca na tecla mais sensível da formação americana, o racismo, observado aqui como a verdadeira tragédia do país, e ainda nos fala do lar e do homem errante, da busca pelo sangue, do ódio, da Guerra de Secessão, dos sofrimentos do Sul derrotado etc.
Quem acha que isso é exagero pode ficar com a história de Carroll Baker, que certa vez o atazanava, pedindo que fizesse o filme "que nem Ingmar Bergman". Ford perguntou: "Bergman? Quem é Bergman?". No dia seguinte, enquanto Carroll se preparava para a filmagem,
Ford chegou perto dela: "Ah, já sei quem é Bergman. É aquele sueco que me acha o melhor diretor do mundo". E Baker não tocou mais no assunto. Ford era um gigante. Mesmo fazendo o filme mais dolorido de sua vida, seu espectador, ao final, se sente feliz e pasmo diante de tanta força. "Rastros" chega aos 50 anos intacto.

Wednesday, September 06, 2006

Uma questão de comunicação
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Uma jovem tenta saber, após a exibição de "Signo do Caos", de Rogério Sganzerla, se não seria função dos filmes se comunicar com um público amplo.
Depende muito. Certos filmes criam conhecimento, e não seria justo esperar que eles comuniquem, na medida em que só comunicamos um conhecimento prévio, não algo que se cria naquele instante.
Godard é um belo exemplo de "descomunicação" e, quando faz "Alphaville", não tem como "comunicar" melhor uma idéia. A idéia são as imagens que correm à nossa frente: a poesia, a sufocação do mundo, o totalitarismo, a impossibilidade do pensamento, a adesão completa a uma linguagem estratificada. Enfim, essa ficção científica de 1965 não deixa de ser bem parecida com 2005.

"Christine" anuncia o triunfo da máquina
INÁCIO ARAUJO
crítico da Folha de S. Paulo

A idéia de um cinema pessoal rareia, quando o preço dos filmes sobe de maneira desmedida e é preciso, antes de mais nada, posicionar-se no mercado.

O fenômeno verificou-se de maneira intensiva ao longo dos anos 80. Nos EUA, os filmes "blockbuster" introduziram uma nova tendência na exibição dos filmes, que passaram a ser lançados simultaneamente em muitos cinemas e explorados por um período curto de tempo.

O velho "boca a boca", a propaganda que um fazia para outro, perdeu a importância, enquanto cresceu a do aparato publicitário. Não foi à toa que Hollywood fez renascer o "star system" (mais um caso da história se repetindo como farsa), difundiu a cultura do "making of" (o suposto conhecimento dos bastidores), investiu na difusão de cifras (raciocínio induzido: se rendeu "x" num fim de semana, deve ser bom).

Ou seja, tudo tornou-se muito rápido: tanto a vida útil do filme na tela (que logo devia passar ao vídeo, ao DVD, à TV paga) como a percepção do público sobre virtudes capazes de levá-lo a comprar um ingresso.

Com isso, viu-se desaparecer toda uma geração de realizadores pessoais. Que foi feito de Peter Bogdanovich, Paul Schrader, Richard Sarafian etc? Outros conseguem manter-se à tona, como Scorsese, Brian de Palma ou, a duras penas, Francis Coppola.

Um que ameaça desaparecer é John Carpenter. Convém aproveitar, portanto, e ver ou rever "Christine - O Carro Assassino", pequena obra-prima de terror sobre a máquina que assume sua autonomia e volta-se contra o mundo dos humanos.

É um filme de 1983 com espírito dos 70. A cada sequência sente-se a mão de Carpenter. Como comparação: "Uma Vida em Sete Dias", que está entrando nos cinemas, não poderia muito bem ser dirigido por um computador? Terão as máquinas vencido?

Tuesday, September 05, 2006

Ferrara contesta obra de Deus, em 'Os Chefões'

INÁCIO ARAUJO

Um gângster armado está diante do assassino de seu irmão. Em vez de matá-lo, os dois se põem a conversar sobre verdade, fé, justiça, escolha.
Estamos vendo um filme de Abel Ferrara, claro. "Os Chefões", no caso. Título que começa por ser a tradução infidelíssima de "The Funeral" e só se justifica como tentativa desesperada de salvar um fracasso comercial previsível.
Não há chefões. Há apenas o funeral de Johnny (Vincent Gallo), um jovem comunista dos anos 30, irmão do gélido Ray (Christopher Walken) e do emocional Chez (Chris Penn).
É gente que mata com facilidade, embora isso não tenha importância para a trama. Toda a questão gira em torno de encontrar o assassino de Johnny e vingar sua morte -o que aparentemente situa "Os Chefões" perto das convenções do filme de gângster.
Mas ao longo da trama veremos que não é bem assim.
Os pequenos marginais são, na verdade, motivo para Ferrara (em associação com seu roteirista habitual, Nicholas St. John) colocar questões recorrentes em sua obra.
A fé é a mais evidente delas. Como em quase todos os seus filmes, abundam os crucifixos e as imagens do Cristo morto, que Ferrara utiliza para desenvolver sua teologia particular.
Em seu ponto de vista -pouco canônico- não há um Cristo que morreu para salvar a humanidade. Ao contrário, é como se cada homem devesse seguir a mesma trajetória e como se a vida não fosse outra coisa senão uma longa crucificação.
Esse martírio é dobrado pela infeliz circunstância de que não somos filhos de Deus. Isso nos abre para o duvidoso direito à escolha.
O livre-arbítrio, a possibilidade de dizer "não", é o que faz dos personagens uma mistura de fé e existencialismo sartreano. Porque o direito de escolha é, a rigor, teórico, como fica claro na cena em que Ray, ainda menino, é chamado pelo pai a apertar o gatilho e tirar a vida de um homem.
"Os Chefões" é um filme compreensivelmente escuro, noturno, povoado por sombras amarguradas, que ou raciocinam todo o tempo -como Ray ou Johnny- ou substituem o pensamento pela insânia -como Chez.
O mundo de Ferrara é um pesadelo porque Deus deu aos homens a liberdade de escolha, com uma mão, e, com outra, tirou-a. Em suma, Deus fez um mau serviço e, se a nós, homens, é reservado o inferno, a sorte de Deus não deve ser tão diferente.
É um filme muito estranho, em que as mulheres (em particular Annabella Sciorra e Isabella Rossellini, casadas com Ray e Chez, respectivamente) sofrem duas vezes: ao lado do caixão e ao lado de seus maridos. Em todo caso, podem se iludir pensando que fizeram um erro de escolha (se o marido fosse outro, a vida seria outra).
É um filme mais duro do que "Vício Frenético" (1992), com Harvey Keitel, e mais memorável, talvez, do que "Olhos de Serpente" (1993), com Madonna. Como ambos, porém, tem um problema: toda a direção gira em torno de pôr em relevo o esgarçamento do cristianismo em Ferrara.

"Eles Vivem" contém a herança do filme "B"
INÁCIO ARAUJO

É um engano supor que os filmes "B" sejam filmes ruins. Eles eram os filmes baratos que compunham o programa duplo dos cinemas, desde que a Depressão dos anos 30 obrigou os donos de salas a oferecer dois filmes pelo preço de um para atrair público.
Eles podiam ser insuportáveis, também podiam ser muito bons. Não é isso que os torna tão particulares, e sim o fato de terem criado um modo de produção absolutamente original, em que se aproveitavam roupas, cenários e até cenas de outros filmes.
O "B" era rodado sempre em poucos dias. Por isso, os diretores davam tratos à bola para filmar de maneira econômica. Daí o "B" ser o domínio por excelência dos planos sequência (toda a cena rodada sem cortes, ou quase).
Os modernos fizeram o mesmo. Rossellini e Orson Welles foram mestres do plano sequência. Nesse sentido, o "B" de certo modo já contém o cinema moderno. Mas, lembra Alcino Leite Neto, não só: o "B" também é herdeiro dessa sofisticação única no uso da câmera que é o grande segredo do cinema mudo: falava-se com a câmera.
Nessa hipótese, o "B" ao mesmo tempo detém o passado e o futuro. Mas não é isso o essencial, e sim que: antes do sonoro, o cinema era mais livre (não sofria dos constrangimentos industriais impostos pelo som), e o moderno começa quando o cinema se liberta dessa camisa-de-força.
Ou seja, o essencial do "B" é a liberdade (que hoje, pós-modernamente, está novamente em xeque). Essa liberdade que seus herdeiros, como John Carpenter, sabem cultivar. E talvez nenhum filme de Carpenter seja melhor exemplo disso do que "Eles Vivem".
É uma ficção científica (ou terror, ou ambos) feita com migalhas, em que aliens se misturam aos terráqueos de tal modo que ao final não sabemos quem é quem. Carpenter substitui a grande produção por invenção. Faz do precário uma virtude. Tira ouro de pedra. Que mais pedir?