Canto do Inácio

Tuesday, October 24, 2006

Em que lugar estaremos daqui a 150 anos?
INÁCIO ARAUJO

A esta altura, todos sabemos o que "Gangues de Nova York" nos mostra. O que não significa que estejam esgotados os seus significados.
A quem se queixa da excessiva violência do filme de Martin Scorsese, só posso dizer uma coisa: ela não é nada perto da que existe no livro de Herbert Asbury, no qual o diretor se inspirou e que, com toda justiça, acabou mencionado na "História Universal da Infâmia", de Jorge Luis Borges.
Os fatos se deram há aproximadamente um século e meio. No entanto, Nova York e os EUA construíram, nesse ínfimo tempo, uma civilização. Violenta e perversa, não raro, mas civilização.
Não há dúvida de que essa é uma angústia do Brasil contemporâneo. O estado de anomia a que se chegou pode ser verificado de uma maneira singela: os cones nas calçadas paulistanas, privatizadas por síndicos de condomínio, donos de lavanderia, ou simplesmente por qualquer um que disponha de um cone. Todos sabem que a calçada é pública, mas desenvolveram a estranha idéia de que o público, pertencendo a todos, não pertence a ninguém, portanto é passível de ser privatizada -porque a lei sempre deve existir, mas não para nós.
O exemplo é singelo. Poderíamos nos deter na mais formidável novidade de segurança que se dissemina: o arame farpado eletrificado. Depois dos muros, das grades de ferro, dos chiqueirinhos, essa é a nova tentativa de criar um mundo perfeitamente vedado às "invasões bárbaras".
Em alguma parte, Borges nos lembra -como o fazia André Breton- que a realidade de um lado e do outro da cela é a mesma. O prisioneiro e o carcereiro, o condenado e o carrasco são no fundo a mesma pessoa, partilham as mesmas experiências. O que teremos daqui a 150 anos? Uma fantástica prisão gigante para os excluídos ou uma civilização? Essa pergunta quem nos faz é "Gangues de Nova York".

“A Mosca” mergulha na angústia humana
INÁCIO ARAUJO

Há duas características que tornam apavorantes as mutações que costumam viver os personagens de David Cronenberg. A primeira é que vivem a mutação em estado de euforia. A segunda é que a mutação é terrivelmente concreta.

Se assistimos a "A Mosca de Cabeça Branca", que Kurt Neumann fez em 1958, logo percebemos seu caráter abstrato. Já o "remake" feito 1986, "A Mosca", é quase insuportavelmente mergulhado no sensível.

Parece que a Neumann só interessava a idéia de um homem transformando-se em inseto, perdendo sua humanidade por buscar os limites da existência. A Cronenberg isso também interessa, mas apenas como decorrência da transformação física em si. Eis o que torna o filme tão repugnante quanto atraente.

Aqui, Jeff Goldblum é o cientista que realiza experiências de transporte da matéria no espaço, como que desmontando e remontando corpos átomo por átomo. Como bom cientista cronenberguiano, ele é sua própria cobaia.

Durante a experiência acontece o que todos sabemos: uma mosca intromete-se no processo. A partir daí, começa a transformação do cientista.

De início, ele é só alegria. Sua força torna-se descomunal, ele parece esses mastodontes de academia de musculação. Não é mais o conhecimento que o inspira, mas a força bruta.

Não será assim até o final, pois a partir de certo ponto o lado animal que ele descobre em si torna-se "o" lado, e a situação beira a tragédia, pois as características humanas tendem a minguar dolorosamente.

Ninguém melhor do que David Cronenberg tem intuído o homem mutante da passagem do século 20 para o 21 e sua angústia: somos a experiência errada de um deus menor, ou seremos o deus de nós mesmos?

Thursday, October 12, 2006

A imagem que não tem sentido
INÁCIO ARAUJO

Quem diria que Jean-Luc Godard seria, ainda, um autor oportuno? Não é que todo mundo o detesta? Que ninguém o entende?
Bem, talvez os acontecimentos mais recentes em São Paulo dêem novo sentido a "Salve-se Quem Puder: A Vida". O filme que marcou a volta de Godard ao cinema "comercial" em 1980 não trata de crime organizado, e sim de TV, do fazer cinema, das relações interpessoais em vários níveis.
Seria ocioso atribuir-lhe um sentido. Godard vai tecendo e buscando, neste filme em que cada cena parece mais interessante do que o conjunto. Talvez isso aconteça porque Godard não se interessa pela ficção, embora aqui a pratique. Seu porto seguro será sempre a imagem e a movimentação em cena: deslumbrantes.

Charles Bronson encarnou face vingativa do individualismo
INÁCIO ARAUJO

Charles Bronson terá sido, no século 20, talvez a mais perfeita expressão de certo espírito pequeno-burguês: individualista, rancoroso, vingativo. Assim era Paul Kersey, o personagem de "Desejo de Matar" --alguém incapaz de observar o mundo a não ser de um prisma estritamente pessoal.

Tendo, neste primeiro filme, de 1974, sua mulher atacada e morta por uma gangue (sua filha foi violentada na mesma ocasião), Kersey só pensa em vingar o ocorrido. Até 1994, outras quatro vezes esse desejo de vingança incontido será suscitado, em mais quatro sequências.

Essa série, que muito impropriamente costuma-se comparar ao "Perseguidor Implacável" criado por Clint Eastwood num filme de Don Siegel, tem por centro real a mesquinhez do personagem de Bronson. E Bronson tinha o semblante perfeito, na verdade, para o papel: em cena, parecia incapaz de pensar; se pensava, soava falso.

Possivelmente isso não tem nada a ver com a vida pessoal desse filho de mineiros, nascido em 1920, com o sobrenome Buchinsky, que após a Segunda Guerra Mundial decidiu tornar-se artista e apenas em 1951 conseguiu seu primeiro papel.

Foram mais ou menos 20 anos como coadjuvante, fazendo em geral tipos vilanescos - índios, mestiços, eslavos -, por vezes em filmes notáveis, como "Sete Homens e um Destino" (1960), de John Sturges, ou em todo caso bem-sucedidos, como "Os Doze Condenados".

O certo é que Charles estava longe de ser um ator de destaque, e se cresceu no final dos anos 60, foi em grande parte graças a filmes europeus importantes que estrelou (ou quase isso), como "Era uma Vez no Oeste" (1968), de Sergio Leone, ou "Cidade Violenta" (1971), de Sergio Sollima.

Eles abriram caminho para o personagem de "Desejo de Matar", que matou, entre outros, a possibilidade de o ator desenvolver algum senso de humor (que, porém, insinua-se em seu rosto), mas garantiu-lhe o prolongado estrelato e a possibilidade que, enfim, nenhum ator pode recusar: um tipo que se ama ou detesta, mas que ninguém esquece.

Monday, October 09, 2006

REPÚBLICA DA TV

Dizem que Lula deixou de ganhar no primeiro turno porque não compareceu ao debate.

Digamos que tenha sido isso. Teria sido uma resposta do eleitor ao suposto desrespeito aos eleitores?

Acredito que teria sido, antes, uma resposta do eleitor ao suposto desrespeito à... televisão.

Pois nesses Incríveis debates políticos da televisão há dois candidatos à presidência da República, mas a verdadeira estrela é a TV, com seu apresentador (que fica no centro), seus regulamentos, suas ordens para falar ou deixar de falar, direitos de resposta concedidos ou negados.

O que esses espetáculos nos dizem, em suma, é que quem manda na gente é a TV.

Todos sabemos disso, inclusive a TV. O debate é o momento em que isso se afirma (junto com a vaidade de alguns "mediadores").

Há dois candidatos à presidência da República, mas a estrela não é nenhum deles, é a televisão.

Inácio Araujo

Friday, October 06, 2006

Fuller agarra tema pelas entranhas
INÁCIO ARAUJO

Dizer que "Matei Jesse James" é o primeiro filme de Samuel Fuller não é dizer muito: todos começam de algum lugar. Mas o que surpreende é a firmeza com que, desde os letreiros, formula um programa que desenvolverá com coerência pela vida.
Comecemos pelo protagonista: não Jesse James, o famoso bandido, mas Bob Ford, o amigo que atirou nele pelas costas. Aí está Fuller abrindo caminho com o que se tornaria um hábito: entrar pela porta dos fundos, apanhando seu assunto pelos fundilhos, mostrando suas entranhas.
Ford é um personagem trágico, na visão de Fuller, porque trai Jesse visando a recompensa prometida e ainda uma sonhada anistia. Com as duas, poderá casar. Desde então, o assassinato parece legitimar-se aos olhos de Bob. O objetivo parece perdoá-lo. O futuro dirá que as coisas não são tão simples.
O cinema de Fuller tem como apoio o de Fritz Lang. Para começar, não se toma em momento nenhum por "divertissement". Não visa seres com vida sossegada: interessam-lhe as situações limite, os pontos de tensão altos.
Fuller ainda não concebe seus filmes em planos longos e arrojados. Em compensação, tira todo proveito do "close up". Por vezes irregular, "Matei..." não é impecável. É, ainda assim, imperdível.

Fritz Lang afirma o lado laico do mundo
INÁCIO ARAUJO

Há de tudo que o cinema pode oferecer nestes dois filmes que o Telecine Classic exibe no fim de semana, "O Tigre de Bengala" (hoje, 22h) e "O Sepulcro Indiano" (amanhã, 22h).

Há amor e ódio, grandes castelos, homens perversos, elefantes, sensualidade, destino, símbolos, perigo, maus atores, bons atores, um quê cafona e outro sublime. É como se Fritz Lang (1890-1976), terminado seu exílio de mais de 20 anos nos EUA, quisesse retomar as coisas no ponto em que havia deixado.

Nos EUA, Lang nunca teve à disposição os recursos de seu início de carreira. Virava-se com orçamentos visivelmente apertados. Talvez por isso, em seu painel indiano, ele volta a um argumento escrito décadas atrás por Thea von Harbou (sua ex-mulher, que se converteu ao nazismo e permaneceu na Alemanha quando Lang deu no pé) sobre um arquiteto alemão que se apaixona por uma dançarina, por azar a mesma mulher por quem está apaixonado o príncipe para quem ele trabalha.

A dançarina descobre, em sua companhia, que é mestiça: metade indiana, metade européia. Quem quiser, pode ver aí psicanálise de quinta categoria. Pode ser. O fato é que por aí Lang coloca o problema central do filme: a que mundo pertence essa mulher?

Louis Skorecki, grande crítico francês, notou que a distância entre Lang e Alfred Hitchcock (1899-1980) é que, para o inglês, o homem é sempre inocente, enquanto para Lang ele existe sempre em estado de danação.

Na mesma linha, pode-se dizer que Hitchcock tinha em mente, sempre, Deus e a alma, enquanto Lang descreve, neste par de preciosos filmes, um mundo tomado de religiosidade para melhor afirmar não a supremacia ocidental, e sim o lado laico do mundo.

Sunday, October 01, 2006

Godard mergulha em babel de linguagens em "O Desprezo"
INÁCIO ARAUJO

Em "O Desprezo" falam-se quatro línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Por isso existe ali uma personagem cuja função quase única é transpor os diálogos de um para a língua do outro. Daí existir um equívoco de critério dos responsáveis pela cópia, que estréia hoje em São Paulo. Quando Jack Palance fala, em inglês, vemos o letreiro com a tradução de suas palavras para o português. Em seguida, Georgia Moll faz a tradução para o francês, e o mesmo diálogo, ou quase, volta a aparecer em português.

Esse equívoco está longe de ser insignificante ou incômodo (embora possa ser alegremente superado pelo espectador). Por sorte, as palavras que Fritz Lang diz em alemão ficam sem letreiros de tradução e só se deixam compreender quando Georgia Moll as verte para o idioma do interlocutor.

Criam-se então segundos de vazio. Porque "O Desprezo" é um filme sobre a incompreensão. Sobre palavras que, ditas em uma língua, nada significam.

Há ali um produtor de cinema, Jeremy Prokosch (Jack Palance), que não se comunica com o seu diretor (Lang). Existe também um marido, Paul (Michel Piccoli), que não se entende com Camille, sua mulher (Brigitte Bardot).

E por que não se entendem? No estúdio, Prokosch, paquera Camille e a convida para ir à sua casa. Paul consente que ela vá no carro de Jeremy e se dispõe a seguir até lá de táxi. Fim: o amor está terminado. Paul jamais entenderá por quê. Camille não lhe dirá a razão. Mas o desprezará.

Enquanto isso, Lang filma. Sua concepção da "Odisséia" é, em linhas gerais, a mesma de seus filmes: o combate desigual do homem contra os deuses. Bem diferente da do produtor, empenhado em inserir na trama cenas de sexo que seduzam o espectador.

E por que seria "O Desprezo" um filme de amor se, já no início, Jean-Luc Godard nos garante, citando André Bazin, que o cinema substitui o nosso olhar? Nesse caso, o cinema mostra o mundo dos nossos desejos, não o real.

O cinema não pode filmar apenas a realidade objetiva, nem o desejo simplesmente. Nessa medida, "O Desprezo" é também um filme sobre o cinema e seu mundo. Talvez o mais belo jamais filmado. Mais belo e comovente até que "Assim Estava Escrito".

Mas não parece ser apenas no cinema que Godard pensa. Uma frase de Lumière aparece como a dizer que o homem é uma invenção sem futuro. Pois o desígnio irônico dos deuses assim o quer. Ou porque esse filme evoca uma outra mitologia, mergulhando seus personagens numa babel de linguagens perfeitas, mas incapazes de estabelecer contato entre os homens. "O Desprezo" é, como se vê, um filme muito atual.

O Desprezo (Le Mépris)
Produção: França/Itália, 1963
Direção: Jean-Luc Godard
Com: Brigitte Bardot e Jack Palance

A importância de ser o coadjuvante
INÁCIO ARAUJO

Não é Tom Cruise que carrega "Colateral", mas seu colega Jamie Foxx, o chofer de praça que conduz o galã pela noite.
Na trama, Foxx começa por levar em seu carro uma advogada. Em seguida pega Cruise, o matador. Um Cruise no mais interessante, porque suas vilanias são, não raro, bem inesperadas.
Foxx, no entanto, é que ficará entre a mulher e o matador - veremos como. Antes disso, tem de carregar o matador celerado, enquanto vê derreter-se seu sonho de possuir uma firma de limusines: se ao final sobreviver, estará no lucro.
Esses inesperados, essas quebras de clichê animam bastante o filme -embora não lhe poupem de aspectos convencionais que fazem de Mann, penso, um cineasta menor do que crêem não poucos amigos.