Canto do Inácio

Wednesday, November 29, 2006

BRASILIA
INÁCIO ARAUJO

Passei só o fim de semana no Festival de Brasília. Tempo de ver "O Engenho de Zé Lins", documentário muito afetivo do Vladimir Carvalho sobre José Lins do Rego.

"Batismo de Sangue" talvez seja o melhor de Ratton, como fatura, o que não quer dizer grande coisa. Gostei dos atores que fazem os padres. Ótimos e com cara de padres. O que faz o frei Betto, me disseram que é o mesmo que fez o Cazuza. O cara é bom mesmo.
O roteiro eu não entendi muito bem: começa como história do frei Betto e termina como história do frei Tito.
Mas o problema é a tortura e os torturadores. Como alguém disse "vamos combinar que eles são maus e pronto?". Pra que submeter Cassio Gabus Mendes a interpretar um delegado Fleury francamente ridículo? Ainda não deu para perceber que Fleury é um personagem desinteressante, um mero psicopata que convinha aos milicos em dado momento? Mais vale passar por isso.
As cenas de tortura são pornográficas. Godard tinha razão quando falou que Spielberg ia transformar o Holocausto em Disneylândia. Leia-se: Holocaustos. Em suma, no que diz respeito a essa parte me parece das piores coisas que eu vi, com "A Paixão de Cristo", do Mel Gibson, e o nosso "Prata Palomares".
Agora, a parte do catolicismo parece sincera. A grua ascendente depois do suicídio do frei Tito acho que é expressão do que sente o Ratton; suicidou-se porque foi martirizado, mas foi para o céu.
Eu não vejo a coisa tão rósea assim, mas quem quiser ver tem o direito. Em suma, um filme fraco.

Sunday, November 26, 2006

Feito em seis dias, clássico de Ulmer constrói labirinto
INÁCIO ARAUJO

"Curva do Destino" é filme-mito por excelência. O filme feito em seis dias, o série "Z" que se tornou clássico. Mas também o filme a que ninguém mais há muito tempo assistia.
Sua produtora é a PRC. Os poucos que já ouviram falar dela sabem que ficava do lado pobre de "Poverty Row" nos anos dourados de Hollywood. Seu diretor, Edgar G. Ulmer, estava destinado, no entanto, ao lado rico da cidade. Foi o assistente que F.W. Murnau trouxe da Alemanha, o roteirista de "Tabu" (1931).
Começou uma carreira promissora de diretor na Universal, fez um terror originalíssimo chamado "O Gato Preto" (1934).
Mas foi pego na curva do destino: tirou a mulher de um parente de Carl Laemmle, o dono da Universal. Laemmle era conhecido pelo nepotismo e pelas vinganças. O empresário jurou que Ulmer nunca mais botaria os pés em Hollywood. E foi mais ou menos isso que aconteceu.
Talvez Ulmer tivesse terminado seus dias dirigindo filmes iídiches em Nova York. Mas o destino fez nova curva: Laemmle foi à falência. Não que isso tenha beneficiado Ulmer tanto assim. Mas pelo menos pôde voltar a dirigir alguns filmes de verdade, inclusive a obra-prima "Madrugada da Traição", um dos melhores faroestes já realizados.
Em "Curva do Destino" (1945), Al, um sujeito duro consegue carona com um tipo estranho e parecido com ele. Quer ir até Los Angeles encontrar a noiva, que tenta a sorte no cinema. Misteriosamente, o sujeito que lhe deu carona morre. Por cálculo, toma o seu lugar e o seu dinheiro. Por azar, topa com uma chantagista que conhecia o finado.
É o "détour". A prova de que Pascal tinha razão: de que entre um ponto e outro existem infinitos pontos e que, portanto, não chegamos nunca a lugar nenhum. Essa a verdadeira história do filme: a do labirinto em que se mete Al, que só parecia ser uma linha reta. A travessia, no entanto, é um tormento. Esse tormento é que faz a grandeza deste filme de menos de 70 minutos: o sentimento que temos de estar numa roda sem fim e sem princípio, perdidos num espaço a cada minuto mais complexo.
O sentimento trágico que perpassa o filme é a sua riqueza. Talvez nunca fique claro porque a chantagista chantageia aquele sujeito. Mas isso não perde importância, diante da maneira encarniçada como Ann Savage dilacera sua presa.
Talvez tudo isso não fosse tão perceptível caso Ulmer não usasse a câmera com tanta maestria, usando os deslocamentos constantes (e muito apropriados) para evitar cortes, ganhar tempo (ou seja: economizar) e impor essa atmosfera pesada que caracteriza o seu filme.
"Curva do Destino" é uma constante luta contra a adversidade. Nisso, aliás, o personagem e o autor se igualam. Talvez venha daí o sentimento de estarmos contemplando uma dessas obras raras, em que cada fotograma parece carregar o combate de seu diretor para se exprimir. Uma obra não perfeita, mas na qual até as imperfeições conspiram para torná-la imperdível.

A força dos duelos verbais
INÁCIO ARAUJO

Os melhores duelos de "Johnny Guitar" (TC Cult, 22h) são verbais. E envolvem duas grandes atrizes: Mercedes McCambridge e Joan Crawford -Emma e Vienna, no filme.
A segunda é dona de um saloon, e a primeira deseja expulsá-la da cidade. Vienna, como digna personagem de Nicholas Ray, é uma solitária (acompanha-a, obliquamente, Johnny Guitar, mas ele é outro "outsider"). Emma comanda uma tropa de homens, que incita ao linchamento.
Os motivos de Emma e seguidores para essa atitude descobriremos ao ver o filme. O interessante é observar como Ray constrói uma rede de tensões (que envolve dos diálogos até as cores, ao cenário, à disposição dos personagens, à gestualidade) para chegar a esta obra-prima tão particular do Velho Oeste.

Monday, November 06, 2006

Fellini essencial está em "Abismo de um Sonho"
INÁCIO ARAUJO

É estranho como os primeiros filmes conseguem por vezes captar o presente e o futuro de seus autores. Por exemplo, todo Fellini está em "Abismo de um Sonho", de 1952.
E o que há ali? Há, já, a paixão do espetáculo, representado no caso pelas fotonovelas. E com o espetáculo vem a fantasia, aquela que as garotas desenvolvem por um galã que idolatram.
Mas estamos em 1952, e Fellini deve prestar seu tributo à realidade, dando uma coloração social a toda a história. Nessa direção temos o Fellini que se aproxima de Chaplin, isto é, que vislumbra a questão social, mas de uma maneira um tanto superficial.
Na verdade, esse aspecto social sobreviverá por muitos anos em Fellini, mas será sempre um tanto lateral, ainda que não raro empenhasse sua mulher, Giulietta Masina, nos melhores papéis chaplinianos que criou.
O espetáculo era a paixão mais autêntica do cineasta de Rimini. O espetáculo, isto é, essa capacidade que certas coisas possuem de atrair a atenção das pessoas. Uma atração em si, sem princípio e sem fim, mas vinculada à infância. Ela está no xeque de fotonovela de "Abismo de um Sonho".
O que Fellini diria de nosso século 21? O que ele diria dessas revistas de celebridades -essa coisa tão circense? O que diria ele, enfim, dessa sociedade que faz do espetáculo o seu fundamento? Ele, discípulo de Rossellini, que detestava o mundo do espetáculo, enquanto Federico o venerava?
"O Abismo de um Sonho" não é certamente o melhor Fellini. Mas é um filme que de certa forma contém todo Fellini: engraçado e triste, doce e amargo, moralista, inquieto. E, em qualquer circunstância, dotado de um talento invejável.

No cinema, somos invisíveis
INÁCIO ARAUJO

Não há quem, em algum momento, não tenha pretendido se tornar invisível. Esta é, possivelmente, a mais perfeita fantasia voyeurista. Por isso mesmo ela se presta tão bem à ficção cinematográfica.
Isto é, no cinema, nós, espectadores, somos exatamente aquilo em que, por acidente, Chevy Chase se transforma em "Memórias de um Homem Invisível": alguém que vê sem ser visto.
Chevy passará por alguns problemas, sobretudo com os agentes federais. John Carpenter, diretor deste filme, não parece disposto a levá-lo muito a sério. Bem menos do que fizera James Whale em "O Homem Invisível", um terror de 1933.
Talvez porque Carpenter e seu público já soubessem, em 1992, que a invisibilidade é um dom do espectador de cinema.

O cinema possui mais do que histórias a contar
INÁCIO ARAUJO

Um casal que assistia a "O Signo do Caos", de Rogério Sganzerla, em São Paulo, há poucos dias, saiu do cinema no meio e indignado com o que viu. "Não tem história nenhuma." "Repete a mesma coisa o tempo todo."
Pode crer: o espectador de cinema -ao contrário do leitor de livros ou do visitante de museus- se acha com freqüência mais inteligente do que os próprios realizadores. Ele não é humilde diante da criação. Embora entre não mais de dez, 12 vezes por ano numa sala, acredita que sabe o que é cinema e se mostra pouco aberto a discussões.
Certos filmes, como "O Signo do Caos", ou os de Jacques Rivette, como "Quem Sabe?" (Telecine Emotion, 22h), são substancialmente filmes de indagação. E só vai se interessar por ele o espectador que busca descobrir o que o cinema é (e mais: ele sabe que o resultado da busca é, antes de mais nada, a própria busca).
Ou seja: quem garante que um filme deve "ter história"? Está na Tábua da Lei ou algo assim? E o que dizer de "Cidadão Kane", que é uma não-história (a história da impossibilidade de contar uma história).
Bem, o filme "Quem Sabe?" até tem uma história. No mais, até uma história cômica sobre Camille (Jeanne Balibar), uma atriz que volta a Paris após passar cinco anos na Itália. Enquanto se dedica ao teatro (sempre há o teatro, a representação, em Rivette), ela reencontra uma série de pessoas.
Assim como há filmes "sem história", este de Rivette é "sem sedução", ou seja, suspende inteiramente a máquina de sedução que é o cinema, não permite que o espectador se apaixone pela personagem ou por seu trajeto. Ele vê, ele segue, ele acompanha esse filme que parece se gerar à sua frente, junto da peça que se monta e da vida que se desenrola, sem pressa. Ao longo de duas horas e meia. É uma bela experiência.

Reichenbach faz cinema "de contrabando"
INÁCIO ARAUJO

É fantástica a capacidade do cinema de se desvincular da realidade referencial para, no entanto, ser verdadeiro. "A Ilha dos Prazeres Proibidos" (Canal Brasil, 22h40) foi feito num tempo de censura brava, no fim dos anos 70. Carlos Reichenbach, seu diretor, exilou seus personagens para aventuras erótico-políticas na Ilha dos Prazeres -situada em algum lugar indefinido da América Latina.
Não existe América Latina -no sentido hispânico do termo- em lugar nenhum do filme. Existe o litoral paulista. No entanto, o uso muito apropriado da música como que contrabandeia essa América, permitindo que a censura deixasse o filme em paz.
Isso não é tudo, claro. Essa Ilha dos Prazeres que foi um dia imaginada por Rogério Sganzerla (ver "A Mulher de Todos") de certa forma reafirma a filiação de Reichenbach ao cinema "marginal" do final dos 60: cinema de gênero, para a massa. Mas também um clássico do cinema muamba (de contrabando).

A imagem é falsa em Welles
INÁCIO ARAUJO

Quem se apegar ao conteúdo vai achar "A Dama de Shanghai" (Cinemax, 18h15) uma maluquice pura e simples. Estamos em um iate. Há Orson Welles e Rita Hayworth. O marido de Rita, um associado dele e Welles empenham-se o tempo todo em aplicar golpes baixos (mas ela, saberemos, não é nenhuma santa).
Em resumo, mal compreendemos a intriga. E o que importa? Ela desemboca num maravilhoso labirinto de espelhos, o mais belo que já se viu, em que as imagens se multiplicam e nunca sabemos onde os personagens verdadeiramente estão.
Esse delirante labirinto resume as idéias de Welles sobre um mundo onde tudo é ilusão. Em particular, aquilo que se quer mais verdadeiro, a imagem.