Canto do Inácio

Sunday, April 29, 2007

UM PLANO DE MARK ROBSON
INÁCIO ARAUJO

Peguei no meio "Meu Maior Amor", do Mark Robson.

Aí há uma cena em que está uma funcionária sentada, datilografando. Ao fundo, entra a Susan Hayward e fala com ela.

A funcionária encaminha Susan a falar com a superiora, dirigindo-se à esquerda do quadro. Susan vai atrás dela e a câmera a acompanha em panorâmica, ela se aproxima, o quadro se fecha até o PP dela.

Ela passa e o quadro se abre novamente. Vemos então uma ampla sala. No fundo, à esquerda, uma senhora (a quem Susan procura), no centro, Susan, de costas. À dir., bem no canto, a funcionária que a levou até lá.

O Mark Robson não é nenhum gênio, mas o filme tem momentos como esse, de muita fluência. A questão é que, quando você vê uma coisa assim, depois não tem como defender "Ó Pai, Ó", por exemplo.

Porque não é um tecnicismo, cara Rosário. Assim como o fraseado do Machado de Assis não é um tecnicismo: é o que ele é.

Cinema não é tão diferente. Cinema, no fundo, são aproximações e distanciamentos. Isso vale para qualquer parte do mundo. Não adianta querer inventar a roda.

Thursday, April 26, 2007

HANNIBAL - A ORIGEM DO MAL
INÁCIO ARAUJO

Para quem acha que a vida não vale a pena, a novidade é: Hannibal - A Origem do Mal" vai mostrar que a coisa ainda pode ser muito pior.

Já para quem entende que o cinema é uma instituição sem futuro, como os irmãos Lumière, por sinal, entendiam, as novas aventuras de Hannibal, o canibal, poderão funcionar como prova definitiva.

Aos fatos: Hannibal Lecter surgiu para o cinema em 1991, em "O Silêncio dos Inocentes", a obra-prima de Jonathan Demme. Mais tarde, tornou-se caricatura de si mesmo, pelas mãos de Ridley Scott, que fez uma sequência infame da história do assassino canibal.

Isso não era suficiente. Mesmo desnaturado, Hannibal guardava um segredo: como chegou a ser o que é! Ah, as origens, as causas. Parece que o mundo não anda sem causas. Então aí estão elas: no final da Segunda Guerra, o menino Hannibal vê sua família morrer na Lituânia e sua irmãzinha ser comida (literalmente, entenda-se) por saqueadores.

Cresce, sozinho, em um orfanato estatal, na URSS, de onde foge a pé, atravessando Polônia, Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental, até chegar a Paris. Ali, aparentemente, adquirirá o sotaque e os modos de "gentleman" psicopata e britânico que conhecemos.

Esse homem que no passado conhecemos por suas deduções brilhantes e enigmáticas, por sua intransigência raivosa com a vullgaridade humana, aqui se dedicará a algo mais singelo: uma vingança.

O bando que matou sua irmãzinha é composto por cinco ou seis homens. Acompanhamos cada morte apaixonadamente, perguntando-nos quantas faltam para o filme acabar e sermos libertados do show de banalidade a que o jovem Hannibal parece ter condenado o seu espectador.

Algumas remarcas. 1) Em meio a toda essa desgraceira, sobra o último crime como exemplo infelizmente único no filme de como fazer as coisas sinteticamente. 2) A parte da formação de Hannibal em Paris não é má, embora não chegue a ser nenhuma maravilha. 3) Da série é tão ruim que é até bom, é preciso reter o momento em que Hannibal faz explodir uma barcaça de rio com tanto estardalhaço que o pessoal da cidade deve ter pensado que havia ocorrido um terremoto. Impassível, o inspetor de polícia diz a seu auxiliar: "Chame os bombeiros". Com efeito, chame.

Saturday, April 21, 2007

RATTON E A TORTURA
INÁCIO ARAUJO

Só dá pra entender pelo ponto de vista comercial a declaração do Helvécio Raton, segundo a qual é preciso colocar as coisas às claras no Brasil, no tocante à tortura.

É uma justificativa para as horríveis cenas de tortura que filmou em “Batismo de Sangue”. Horríveis em mais de um sentido. Dizer que a tortura é central no filme não explica nada, porque a morte também é essencial em, digamos, “M”, de Fritz Lang. A questão é outra.

Nem sempre abordar francamente um assunto significa trazê-lo à luz, e esse me parece o equívoco do Ratton. A diferença entre a vida e a arte é que a segunda requer mais imaginação. Era preciso um esforço para nos fazer crer em quão dolorida pode ser a tortura _não mostrá-la não equivaleria a ocultar, mas a fazer-nos sentir uma violência que no filme é meramente retórica. Essa a questão de Lang.

Da mesma forma, o fato de certas coisas terem acontecido na vida real não significa que se transformem em boa obra de arte. Não sei se o delegado Fleury era o personagem ridículo que nos é apresentado no filme. Mas não era sua imbecilidade que o tornava monstruoso, era o poder que detinha. Esse poder pode ser mostrado de forma histriônica ou não. Ratton ficou com o histriônico, e me parece que, como no caso da tortura, se equivoca.

O desagradável é que se equivoca num filme em que fez muitas coisas certas. O elenco me parece ótimo, muito bem escolhido e dirigido, e a idéia de trazer o drama dos dominicanos à cena é boa. Talvez seja a melhor representação do clima do movimento estudantil da época que vi até hoje. Agora, não acredito nesse papo de que a questão é denunciar a tortura. Nada disso. O problema é que esses padres acabaram com a fama de terem sido os bananas, os fracos, os traidores que entregaram Marighela. Toda a questão do filme é essa: desmentir essa versão, mostrar que os padres só denunciaram porque foram barbaramente torturados. Essa a única razão que justifica essas cenas. E esse é o não-dito que envolve o filme e é o que o compromete. Ratton atribui um sentido ao suicídio de frei Tito: o fato de se ver perseguido pela figura terrível de Fleury (o que justificaria também o Fleury ridículo a que somos apresentados). Quem pode garantir que seja? Será que a fama de dedo-duro dos dominicanos não pesou nisso? Será que ele não tinha uma tendência depressiva que independia disso? Por que reduzir as coisas a uma causa, por relevante que seja? É por opções como essa que o filme se enfraquece.

Pessoalmente, teria preferido ver um filme abertamente católico, vergonhosamente católico (o que ele é sem admiti-lo). Essa história de tortura, de denúncia, por favor, é uma opção pelo óbvio que demonstra a fragilidade teórica do filme. Não é só desse filme, por sinal. É a do “cinema industrial”, “de comunicação”, que se difundiu como fatalidade nacional. Não é.

Desculpem, a nota está grande e todo mundo já deve estar de saco cheio.

Friday, April 13, 2007

PEQUENO ALÔ PARA O BLOG, SOBRE PIRATARIA
INÁCIO ARAUJO

Num jornal da Rede Globo, hoje, sexta-feira 13, a repórter garante que crianças de uma escola falam como adultos a respeito de pirataria.
Aí entram as crianças. Dizem que produtos piratas estragam os aparelhos, espalham vírus, o diabo.

Para falar a verdade, nunca soube de um produto pirata que produzisse tais efeitos. E olha que já vi todo tipo de gente usá-los, de joguinhos infantis a DVDs.

O que já vi acontecer, em DVDs, é eles não passarem, travarem, etc. Isto é, mais ou menos o que acontece também, inúmeras vezes, com DVDs da Continental.

Acho ridículo a Globo se prestar a esse papel. As crianças da reportagem não falavam como adultos. Falavam como pequenos robôs a quem haviam sido ensinadas mentiras.

Não acho que isso vá resultar em bom combate à pirataria. Quando descobrirem que é mentira (se for, de fato), essas crianças vão desacreditar de quem lhes ensina tais coisas.
Se for verdade, aprenderão sozinhas. O que se espera que escolas ensinem não é isso.

E espera-se que imagens de TV sejam mais verdadeiras.

Friday, April 06, 2007

"AS SAFADAS" FOGE DO ÓBVIO DE HOJE NA TV
INÁCIO ARAUJO

Por que, numa Sexta-Feira Santa, eu preferiria um filme como "As Safadas" (Canal Brasil, 0h), a, digamos, "Os Dez Mandamentos" (Telecine Cult, 18h10)?
Porque "Os Dez Mandamentos" todo mundo sabe o que é, porque é e até como é. Está recomendado automaticamente.

"As Safadas" é bem o contrário: uma produção ínfima de A.P. Galante, que, durante um tempo de inflação desbragada, soltou três equipes a filmar ao mesmo tempo: prazo de seis dias e cinco rolos de filme cada.

Ao fim de um mês tinha o filme pronto. Há ali um belo episódio de Carlos Reichenbach. Mas deixemos de hipocrisia: o que me apaixona mesmo é o segundo episódio, que filmei em condições quase desumanas, com atores que quase se mataram para que se chegasse a algo decente.
Há ali coisas que me agradam, coisas que eu daria tudo para ter refilmado (não havia filme, nem tempo). E há um modo de produção econômico que abortamos, quando deveríamos aperfeiçoá-lo.

(publicado na Folha de S. Paulo de 06 de abril de 2007)

Thursday, April 05, 2007

NAS ARTES PLÁSTICAS
INÁCIO ARAUJO

Sururu nas artes plásticas. É o cinema na vanguarda, transmitindo seu exemplo de inconsistência a outras artes.

Bia Lessa faz a cenografia de uma exposição e coloca os quadros no chão.

Os pintores protestam e a imprensa faz barulho.

A exposição se enche. A imprensa adota seu valor máximo (o ibope, o mercado) ao noticiar que a exposição é um sucesso, pois vai mais gente do que em outras feitas no mesmo local.

Visitantes cujas cartas são publicadas acham que os pintores são uns caretas pois não aceitam as inovações.

Por etapas.

1. A questão não é ser contra ou favor de inovações, mas nem tudo que não foi feito antes pode ser considerado novo. Há coisas que não se faz porque não têm pé nem cabeça.

Se alguém decidir editar um livro com páginas de ponta-cabeça não estará inovando. Se alguém resolver projetar um filme com a emulsão invertida, não será um projecionista revolucionário.

A Bia Lessa pode ter até coisas interessantes, não sei (não é na área de cinema, em todo caso: "Crede-Mi" é risível), mas já havia feito uma coisa completamente estapafúrdia na exposição dos 500 Anos. Você entrava no Barroco para ver o Aleijadinho, mas via a Bia Lessa.

2. O que é chato nisso não é tanto o fato em si. Mas consolida-se essa idéia de que qualquer besteira, quando feita no Brasil, não é uma besteira, é uma "polêmica". Em outras palavras, isso significa que tudo é indiferente. Daí que temos hoje a literatura que temos, o cinema que temos, o etc. que temos, de que o mundo parece não sentir a menor falta.

Tuesday, April 03, 2007

RALO, NÃO PROFUNDO
INÁCIO ARAUJO

Só existe um personagem em “O Cheiro do Ralo”, que é a matéria fecal. Esse personagem único permanece fora de quadro durante todo o filme. Só temos contato com suas metáforas (o personagem), eufemismos (a bunda feminina) e simbologia (o dinheiro). Me parece que o encantamento provocado junto a parcelas do público deve-se a essa enunciação truncada, como essas piadas de teatro de revista que dizem tudo sem dizer nada.

Ao mesmo tempo, “O Cheiro” traz um ponto de vista muito claro sobre a espécie humana. Ela própria não é senão merda, personagem principal que se difunde por pessoas e ambientes. Nesse sentido, Heitor Dhalia retoma o pessimismo dandinesco e um tanto monocórdico de “Nina”: o humano é a merda do homem.

Tenho a impressão de que o filme satisfaz um gosto atual pelo impacto e se dá bem na medida em que suas posições são bem claras, unívocas, ao mesmo tempo em que a fábula dá a impressão de cultivar o mistério das coisas. Me parece também que seu interesse é bastante restrito, rápido, epidérmico.

Monday, April 02, 2007

O RABINO
INÁCIO ARAUJO

Os blogs estão cheios de heróis. Abri o do Juca Kfouri e vejo uns idiotas dizendo que o Sobel não passa de um ladrão.
Esses caras do mata-esfola, tão corajosos quando se trata de escrever anonimamente coisas que não fazem sentido, não têm a menor noção do que o rabino Sobel enfrentou nos tempos de ditadura. Em boa parte é graças a ele que a versão de que Vladimir Herzog tinha se suicidado (divulgada pelo exército) não emplacou.

...

Quanto às gravatas, falo por mim e não peço a ninguém que acompanhe: me parece no mínimo muito interessante que ainda exista um líder de comunidade (e religioso) capaz de atos de transgressão.
Mesmo que estivesse tomando remédio, pirado, sei lá o que, foi um ato transgressor, um gesto de inconformidade, que o fez pular fora do lugar comum desse mundo cheio de controles. Estou a favor.