Canto do Inácio

Friday, December 21, 2007

FIM DE ANO
INÁCIO ARAUJO

Quero me desculpar com todos os amigos que entraram aqui para trocar idéias, para debater imagens e a quem não pude responder.

O tempo anda terrivelmente escasso, como vocês podem verificar pelo meu desaparecimento pós-Brasília.

Não é só o tempo, na verdade: Brasília me deixou um pouco traumatizado. Assim: não posso dizer nada, consigo dizer nada, não quero dizer nada. Só: o cinema está em perigo, com a graça de Deus "Cleópatra" acabou melhor filme.

Uma só coisa eu preciso dizer: o filme que ganhou o prêmio da Crítica é, metade pelo menos, um plágio escancarado (tão escancarado que mal posso crer que o rapaz não tenha se dado conta, de todo modo ultrapassa em muito os sete acordes consentidos) da "Fogueira das Vaidades" (como trama, claro; não como estilo - antes fosse), isso não é direito (nem fazer isso, nem muito menos atribuir a isso um prêmio desses).

Se eu não tiver mais tempo de aparecer, deixo para todos um Feliz Natal e um 2008 produtivo, agradável, inquieto e belo.

Wednesday, December 19, 2007

"SOBRE MENINOS E LOBOS" TRANSLUZ DUPLICIDADE DA VIDA
INÁCIO ARAUJO

Às vezes alguém pergunta por que mesmo os filmes menores de Clint Eastwood merecem elogios dos críticos. A resposta é muito simples: basta compará-lo aos filmes da maior parte dos outros realizadores. No drama, no melodrama, no faroeste, Eastwood sempre tem um ponto de vista próprio a expor, algo a desenvolver que preserva a coerência do conjunto de sua obra.

Não importa tanto qual a origem do argumento de "Sobre Meninos e Lobos", por exemplo. Na história dos três amigos de infância que se reencontram na maturidade, Eastwood coloca seu olhar pessoal com muita ênfase.

Vejamos: Sean Penn é o ex-criminoso cuja filha é assassinada. Kevin Bacon é o que se tornou policial e investiga o caso. Tim Robbins é aquele que, em menino, foi violentado por um padre e que hoje ainda convive com esse trauma. Ele é, por isso mesmo, o principal suspeito do assassinato.

O desenvolvimento da trama é razoavelmente vulgar, assentando-se em mal-entendidos. No entanto, o filme nos interessa e nos prende a atenção. É possível que isso se dê, ao menos em parte, devido à atuação do elenco - que é uma virtude de diretor, diga-se.

Mas existe, antes de tudo, esse apego de Eastwood à duplicidade da vida. Seus personagens sempre têm duas vidas. É o caso, aqui, de Tim Robbins: sua primeira vida ficou na infância, precede o momento da violentação. A segunda vem depois. A segunda, no mais, dificilmente pode ser chamada de vida: ele tornou-se um fantasma.

Sua existência é somente a confirmação da morte moral que o atingiu na infância.Por que ele sente as coisas assim? O filme não explica. Há um quê católico nisso, é evidente: se algo de ruim acontece, a culpa deve recair sobre a vítima. É assim também em "O Homem Errado", de Hitchcock, não é? Eastwood coloca-se aqui, bem incisivamente, como um cineasta "à altura do homem". Ou seja: em briga com Deus.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de julho de 2005)

Saturday, December 15, 2007

EASTWOOD DISCUTE MITO DO HEROÍSMO
INÁCIO ARAUJO

Iwo Jima, uma ilha do Pacífico, foi o local de uma das mais sangrentas batalhas no front oriental da Segunda Guerra.

Tratava-se, para os japoneses, de evitar a entrada dos americanos na ilha a qualquer custo.

E, para os americanos, de conquistar uma posição estratégica, já em território japonês. Após duros combates, os americanos conseguiram tomar uma parte do território e ali erguer sua bandeira.

Clint Eastwood utiliza o episódio em dois filmes, "A Conquista da Honra" e "Cartas de Iwo Jima".

O diretor trata, em "A Conquista...", não bem da guerra, nem da batalha. É a bandeira que importa. Ou melhor: a foto da bandeira sendo fincada em terra estrangeira e a repercussão que teve internamente.

É claro, Clint pensa em guerras mais atuais. Mas a Segunda Guerra é o palco ideal para colocar sua indagação: "O que é um herói"? A pergunta é, de certo modo, clássica. E, como está longe de ser um tolo, Clint aproveitará fontes centrais do cinema americano em busca de uma resposta contemporânea.

Convivem neste filme três tons distintos e complementares: o amargor do John Ford de "O Homem que Matou o Facínora", a crispação de Samuel Fuller (da escola de Fritz Lang) em "Agonia e Glória", a frieza e a ironia de Howard Hawks em "Sargento York".

É perfeitamente possível gostar do filme sem nunca ter ouvido falar dos ilustres nomes acima. Clint sabe nos deixar completamente envolvidos na narrativa em torno do grupo de soldados que aparece na foto.

A conquista é ainda mais relevante do ponto de vista simbólico do que do militar, pois a foto daquele feito, publicada em todos os jornais, mudará o ânimo dos americanos sobre os rumos da Segunda Guerra Mundial. Ciente disso, o governo tratará de repatriar seus heróis para que se tornem garotos-propaganda da venda de bônus de guerra.

Aí, porém, começam os problemas. Heróis quem? Heróis como? Aquilo que a opinião pública reconhece como heróis não são senão os rapazes que ergueram a bandeira na hora da foto. Que heroísmo pode existir nisso? Clint começa por aí a esquadrinhar a questão proposta. É fascinante.

Tão fascinante quanto a operação que desenvolve em relação ao cinema americano. Como falar de heroísmo sem lembrar, com Fuller, que "na guerra, o único heroísmo é sobreviver"? E como falar de verdade sem lembrar o enunciado de "O Homem que Matou o Facínora" (quando a lenda é mais forte que a verdade, imprime-se a lenda)? E Ford, que cultivou mais do que ninguém os mitos da América, imprimia a lenda, mas mostrava a verdade que desmentia o fato.

Por fim, como omitir "Sargento York", em que a fabricação do herói e do heroísmo é como que colocada num microscópio por Hawks? Não se trata de "homenagear" esses cineastas clássicos, nem de evocar o fantasma desse belo passado do cinema, e sim de saber que o presente do cinema se faz com seu passado.

É como se, a cada cena, Clint quisesse voltar nesse admirável filme a um passado "yorkiano", no qual o herói, feliz e sem ambigüidade, caía nos braços do povo. Mas, a cada vez, é como se esse movimento fosse interrompido pelas sombras da história, pelas mentiras que ficamos conhecendo, por tudo aquilo que se omitiu para que a vitória se tornasse possível.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 02 de fevereiro de 2007)

Wednesday, December 12, 2007

DIRETOR COLOCA NO RINGUE "FANTASMAS" DO BOXE
INÁCIO ARAUJO

No boxe a questão não é vencer e, sim, "ter uma chance", explica Scrap (Morgan Freeman), ex-lutador cujo nome poderia ser traduzido por rebotalho e que é também o narrador do filme.

A história que conta diz respeito a Frank Dunn (Clint Eastwood), velho treinador e um perdedor. Como mais ou menos todos no boxe, é o que dá a entender Scrap.

O fato, porém, é que "Menina de Ouro" não é senão acessoriamente um filme sobre a arte, dita "nobre", do boxe. Mas passa por ela, e não por acaso. Trata-se de um esporte extremo. Quem passa por ele carrega dores, cicatrizes, remorsos. Perdas, enfim.

Não sabemos com precisão quais as dores que Frank carrega, mas podemos imaginá-las. Cada frase que consente em proferir parece a ponta de um iceberg, traz marcadas as derrotas que a vida lhe infligiu e que nem sempre aconteceram dentro do ringue. Basta ver o caso da filha, que se recusa até a receber suas cartas.

O boxe é, ao que parece, uma escola de perdedores e, mais, um esporte fora de moda: essa história do indivíduo em situação extrema que se bate para triunfar na adversidade -tudo isso parece pertencer a um outro tempo. Na mitologia contemporânea, a "nobre arte" perdeu espaço para artes marciais ou vale-tudo. Tornou-se, eis o fato, coisa de mulher.

Daí o aparecimento de Maggie Fitzgerald (Hilary Swank) na decadente academia ter tudo para ser um alento para Frank: ele não é bem um homem -é o fantasma de um esporte em agonia.

Mas outro aspecto importante é o lado hawksiano deste filme. Há pouco tempo, Clint lembrava, numa entrevista, que o primeiro filme a ter visto na vida foi "Sargento York". E que via em "Jejum de Amor" um exemplo do que é o roteiro de cinema. São dois filmes de Howard Hawks, o cineasta da "câmera à altura do homem".

Frank é um personagem com características dos personagens de Hawks: afirma-se como homem, desafia a fé constantemente e quer distância de mulher.

Maggie será, para ele, a própria vida: a substituta da filha que o renegou. Por isso não quer treinar mulheres: sabe que são um perigo para o homem, para o nada masculino. Mas Maggie, qual uma heroína hawksiana, se impõe.

As semelhanças ficam por aí. Aqui não se trata, como em Hawks, do amor de um homem por uma mulher, mas de uma afeição profissional ou de uma relação entre pai e filha, dois seres solitários que precisam do outro.

Se Hawks é o cineasta da afirmação humana, que tira Deus da jogada, Clint é um cineasta de mortos-vivos. A morte espreita a cada passo. Ela está na narração de Scrap, em cada vez que uma pessoa sobe no ringue. É verdade que a presença de Maggie o traz à vida por um tempo. Será até um momento cheio de sentimentalidade que talvez seja uma maneira de preparar a secura chocante do final. Do qual emergirá um Frank Dunn de volta a sua condição original: de homem fantasma.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de fevereiro de 2005)

Monday, December 10, 2007

WALSH FILMA ASPIRAÇÃO À GRANDEZA
INÁCIO ARAUJO

O que acontece a um herói de guerra depois da guerra? De forma moderna (e angustiada), Clint Eastwood tratou do tema em "A Conquista da Honra".

Raoul Walsh, cineasta clássico, não tinha tanta necessidade de se angustiar. Os heróis da Primeira Guerra propostos em "Heróis Esquecidos" não hesitam em buscar novos destinos. Um deles se torna advogado. Os outros dois (James Cagney e Humphrey Bogart) são gângsteres.

No cinema da velha Warner, não havia muito segredo: voltou da guerra, não tem dinheiro, entra para o ramo das bebidas clandestinas. Se você é um durão, tipo Cagney, sobe na vida com relativa rapidez.

Walsh provê o filme do senso de urgência que marcava o destino de seus personagens. Nada pode ser adiado. A terra queima sob os pés dos heróis (ou anti-heróis). Eis o que faz de Walsh um cineasta raro: sempre trata a trajetória dos personagens em função do destino trágico que lhes é reservado.

Não há o que esconder: todos sabemos que as coisas não terminarão bem. Não é preciso esconder isso do espectador ávido por surpresas. O gênero já nos leva para lá. Mas o que poderia ser mera punição do mau comportamento, Walsh sabe trabalhar como a grandeza de ambição desses homens, que poderiam ser policiais ou taxistas, mas não se contêm: é preciso ao menos tentar ser grande, matar para viver seu destino e morrer com grandeza.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 20 de março de 2007)

Wednesday, December 05, 2007

CHAPÉU DEFINE HACKMAN EM "OPERAÇÃO FRANÇA"
INÁCIO ARAUJO

O que seria do detetive Popeye Doyle sem seu chapeuzinho? Popeye é o herói de "Operação França". Quem vir o filme agora poderá achar que aquele chapeuzinho foi moda. Ledo engano. Nunca o vi em outra cabeça que não a de Gene Hackman, intérprete de Popeye.

Todos sabemos que "Operação França" é um policial sobre combate a traficantes de entorpecentes. E que o filme é marcante, por exemplo, pelas seqüências notáveis de perseguição, dessas que só o diretor William Friedkin parece capaz de conceber.

Mas o que mais fica presente (para mim, em todo caso) é o chapéu de corpo e aba redondos, que não se contenta em parecer desajeitado na cabeça que o veste. Ela torna o corpo inteiro um inconveniente, uma coisa em descompasso com o mundo.

Às vezes se pensa que o difícil em cinema é ter grandes idéias. Não é. Achar essas pequenas coisas é que dá vida aos filmes e os mantém vivos por décadas, como, aliás, neste caso.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 04 de dezembro de 2007)

Saturday, December 01, 2007

JOGO DE CENA
INÁCIO ARAUJO

Do Coutinho eu não falo. Não há o que o falar. Está tudo lá. Ou quase. Queria lembrar que o filme começa com um anúncio pedindo "atrizes para filme documentário". Como assim? Uma vez eu entrevistei o Coutinho. Ele se definiu: "Eu Sou um jansenista".

Ou seja: ele não é um gênio. Ele apenas sabe o que faz. Ninguém pense que aquilo brota na cabeça de um velhinho inocente. Isso não tem nada de inocente.

Somos os últimos de uma era, disse o Julio Bressane outro dia. Esse também sabe o que fala e o que filma. Não é chegar e ir rodando a manivela.