Canto do Inácio

Friday, May 30, 2008

"INDIANA" É ARMANI DA AVENTURA CONTEMPORÂNEA
INÁCIO ARAUJO



Indiana Jones está de volta, e com certeza não faltaremos ao encontro: um grande evento, com ingressos vendidos antecipadamente, o retorno de um personagem marcante, projeção em Cannes e muito bumbo batendo em todos os cantos.

Convém, no entanto, não contar com muito. O que "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" entrega é, em linhas gerais, mais do mesmo. Porque o cinema que Steven Spielberg ajudou a criar é feito de marcas. Indiana é uma das mais fortes: um tipo de Armani da aventura contemporânea.

Se formos pensar em termos de estrito divertimento de fim de semana, o novo Indiana não decepciona. Depois de 19 anos, mantém a forma (física) admiravelmente. E como nesse meio tempo esquecemos da maior parte de seus feitos antigos, não custa retomá-los.

No entanto, é bom saber de duas ou três coisas para não alimentar expectativas demais. "O Reino da Caveira de Cristal" retorna aos cenários exóticos, e não faltam ao encontro nem as cobras, nem os abismos de sempre. Não faltam crânios (tudo gira em torno de uma caveira, afinal), nem macacos.

Espião comunista

Como se quisesse se prevenir da possibilidade de ser chamado de ultrapassado, Indiana desta vez é menos reflexivo do que no terceiro exemplar, quando o herói ganhou um pai (na pessoa de Sean Connery). Desta vez ele ficará sabendo, ao contrário, que tem um filho. No mais, há também mudança no quadro político que serve de pano de fundo.

Desta vez, estamos nos anos 50 do século 20 e os perigos a enfrentar são o comunismo (na pessoa da agente Cate Blanchett) e o macarthismo, este último no início do filme. Aliás é o que o filme tem de mais original: Indiana suspeito de ser espião comunista aos olhos do FBI. Mas logo a ação desvia-se para a selva da Amazônia, onde Indiana se mete com o jovem Mutt (Shia LaBeouf), em busca dos traços de uma civilização extinta, a mesma que teria abrigado o El Dorado dos espanhóis.

Para resumir, o El Dorado aqui seria uma civilização visitada por seres extraterrestres. E, de passagem, Spielberg nos oferece aqui uma espécie de resumo do cinema de aventura dos anos 50, especialmente o de ficção científica: de vampiros de almas a deuses astronautas, de formigas devoradoras a Tarzã, temos de tudo um pouco. Isso garante um tanto de variação ao filme, que reitera, no entanto, o espírito de seriado que garantiu o sucesso do herói no passado.

Indiana continua, no fundo, a criança que sempre habitou o arqueólogo.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 22 de maio de 2008)

Friday, May 23, 2008

"HOUSE" VIRA REDUTO DE CRIATIVIDADE INTELIGENTE
INÁCIO ARAUJO


Quem assistiu ao primeiro ano da série sabe o que esperar de "House". Estamos diante de um médico (Hugh Laurie), craque em diagnósticos e de humor ferino.

Para quem não conhece, convém dizer que House é um homem amargo, que quer combater o mal em si (a doença), mas diz não se interessar pelos pacientes, isto é: espera muito pouco dos humanos. Talvez esse espírito sarcástico se deva ao problema na perna, que hoje o obriga a andar de bengala. Talvez ao fato de ter se separado da mulher. O fato é que, como especialista em diagnósticos, House desenvolve um trabalho de detetive que, em vez de tentar localizar um criminoso, tenta identificar um mal.

A série foi criada pelo roteirista David Shore e desde o início impressiona pela qualidade dos diálogos -superiores às situações. Na verdade, não só "House" como as séries em geral são hoje um notável reduto de criatividade no cinema americano atual. A estrutura hipercompetitiva da distribuição tirou de circulação bons cineastas - sobretudo independentes -, entre eles Bryan Singer, produtor-executivo da série e diretor de alguns episódios.

Quando se vê a ficha técnica das séries, é possível encontrar outros nomes de talento, como Allan Arkush. As séries são, hoje, um reduto de imaginação e "know how", sem as pretensões do "cinema independente" americano atual (aspas pelo pouco de independência demonstrada).

No piloto do segundo ano, a ex-mulher de House passa a trabalhar no mesmo hospital que ele. A situação é explosiva e tenta renovar seus conflitos no hospital e adiar o esgotamento da série. Que não parece ser para já: o primeiro episódio promete que o novo ano será bem costurado, bem dialogado, agradável, inteligente, bem dirigido e interpretado. As séries, "House" entre elas, têm muito a dizer no cinema atual.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 12 de abril de 2006)

Friday, May 16, 2008

"BEIJA-ME" OBSERVA DESEJO COM SARCASMO
INÁCIO ARAUJO


Em torno de Billy Wilder, existe um mistério: por que certos de seus filmes fazem sucesso, enquanto outros passam em branco? Por que o belo "Fedora" nem chegou ao Brasil, ou "Amigos, Amigos, Negócios à Parte" foi esnobado solenemente, para ficar apenas com dois casos.

Nessa categoria também entra "Beija-me, Idiota", se bem que nesse caso existe o estigma da imoralidade. Pois nosso conservadorismo não gosta nem de ouvir falar da história do compositor talentoso, desconhecido, caipira, que, para ter a chance de ser revelado, praticamente entrega sua mulher a um famoso cantor (Dean Martin).

Pouco importa também que sua mulher, no caso, não seja bem sua mulher, mas a prostituta da cidade (Kim Novak): as trocas de pessoas, mais as trocas de afetos que se vê põem em certo risco os hábitos matrimoniais estritos e desencadeiam essa coisa caótica que é o desejo. O desejo que Wilder observa não com ironia, como Lubitsch, mas com sarcasmo.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de maio de 2008)

Sunday, May 11, 2008

A TENTAÇÃO INDIVIDUALISTA DE MANN
INÁCIO ARAUJO


O que dá aos filmes de Anthony Mann essa dramaticidade profunda, poucas vezes alcançada pelo cinema? É, em boa parte, a maneira como estão fincados na história da América e do próprio faroeste. Se John Ford constitui o mito da nação fundada sobre a comunidade de homens comuns, Mann acrescenta a esse olhar um problema.

Ao lado da comunidade há um feroz individualismo. Em "E o Sangue Semeou a Terra", há a caravana disposta a construir um mundo novo e puro no Oeste. Mas há também a tentação individualista, de se sobrepor ao conjunto. No caso, ela existe em dois estágios: um bandido que busca a regeneração (James Stewart) e outro que nem tanto (Arthur Kennedy). O conflito será sublime.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 05 de março de 2001)

Monday, May 05, 2008

O SONHO QUIXOTESCO DE WELLES
INÁCIO ARAUJO


Não existe uma versão cinematográfica do "Quixote" que beire a celebridade do romance de Cervantes. E não faltam versões cinematográficas, com Ferdinand Zecca como o primeiro cineasta famoso mencionado por adaptar um "Quixote", em 1903. A versão realizada por Pabst na Alemanha, em 1933, é dificilmente abordável. A de Grigori Kozintsev (ex-URSS, 1957) não parece ultrapassar os limites do academismo na era pós-stalinista. Na Espanha foram feitas várias versões, sem repercussão. Também a TV produziu seus "Quixotes". Ao todo, são registradas cerca de 30 versões.

Mais famosos ficaram os projetos de dois cineastas americanos. Howard Hawks comentou durante ao menos duas décadas sua intenção de juntar Cary Grant e Cantinflas em sua versão. Hawks tinha no mínimo duas características capazes de levá-lo a conceber um bom "Quixote": o senso de humor e o estilo livre de afetação -características que o aproximam de Cervantes. O fato é que de seu plano nada surgiu.

Orson Welles, ao contrário, trabalhou pelo menos 20 anos num projeto iniciado em 1955 e que foi um de seus grandes investimentos. O filme começou como uma encomenda para a televisão CBS, mas a versão de meia hora apresentada por Welles foi rejeitada por excessivamente anticonvencional para os padrões da época (e a TV na época tinha muito menos convenções do que hoje).

Daí por diante, a empreitada tornou-se uma obsessão pessoal de Welles. Sempre que lhe sobrava algum dinheiro (o que ganhava como ator costumava investir em suas produções), Welles reunia o elenco e a equipe e filmava um novo fragmento do "Quixote". Até quatro meses antes de sua morte, em 1985, Welles fazia planos de concluir o trabalho.

O certo é que, ao menos no que diz respeito à filmagem, nessa altura o projeto já estava irremediavelmente comprometido, com as mortes de Francisco Regueira (o Quixote), em 1969, e Akim Tamiroff (o Sancho Pança), em 1972. A exemplo de "É Tudo Verdade", o filme latino-americano de Welles, "Dom Quixote" se transformara em mito. O diretor cogitava, seriamente, segundo seu biógrafo Frank Brady, dar-lhe o título de "Quando Você Vai Terminar Dom Quixote?" - de tanto que lhe faziam a pergunta.

A história que se segue à morte de Orson Welles é de difícil compreensão. Primeiro, Costa-Gavras montou uma versão de 40 minutos do material, patrocinado pela Cinemateca Francesa. Mais tarde, o produtor Patxi Irigoyen comprou da atriz Oja Kodar - herdeira dos direitos dos filmes incompletos do cineasta - mais 30 mil metros de negativos que estavam fora da montagem de Costa-Gavras e 10 mil metros que nem tinham sido revelados, além de algumas cenas que haviam ficado com amigos de Welles nos EUA. Ainda assim, Irigoyen acha que faltou uma cena capital, quando Quixote investe contra uma tela de cinema.

Depois de restaurado, o negativo foi entregue a Jess (ou Jesus) Franco, diretor espanhol de muitos filmes. A versão, apresentada em 1992 com o título de "Dom Quixote de Orson Welles", foi dinamitada pela crítica e acusada de traição a Welles.

É possível, mas seria insuportável que se tivessem perdido definitivamente, embrulhadas numa querela sobre autenticidade sem nenhuma perspectiva de solução, coisas como as interpretações de Regueira e Tamiroff, entre outras.

Regueira era o Quixote em pessoa, com seu tipo muito magro, a expressão ao mesmo tempo obcecada e sonhadora. Welles devia ter uma opinião parecida, já que optou por Regueira mesmo sabendo que ele, exilado por conta do franquismo, não podia voltar à Espanha para filmar.

O diretor concebeu seu "Quixote" na atualidade, o que é uma maravilhosa insânia. Welles criou cenas memoráveis, como o espantoso encontro entre Quixote e uma garota de lambreta. Ele dizia que sua intenção era marcar o caráter atemporal do personagem. Ao mesmo tempo, rompia com a subserviência do filme em relação ao texto original, que no caso de livros demasiadamente célebres quase sempre leva à catástrofe. Por fim, o aspecto de obra que comenta a obra, já presente no livro, se reafirmava de maneira original.

No mais, Jess Franco acrescentou, entre as cenas, material em que o próprio Welles aparece, o que reforça o caráter de obra recuperada (a versão em DVD que existe no Brasil é de qualidade precária, o que é uma pena).

Para voltar ao início, dos dois grandes cineastas americanos que cultivaram o projeto de um "Quixote", apenas Welles levou-o adiante, e de maneira tenaz. Não que Hawks não fosse tenaz. É que, talvez, fosse necessário algo mais para fazer um "Quixote" de peso. Welles quis compor a imagem de um fabuloso sonhador, capaz de olhar para moinhos de vento, enxergar gigantes e, contra toda evidência, colocar sua visão poética do mundo à frente da trivial realidade. Essa luta, de certa forma, resume Orson Welles, que foi um Cervantes, pela grandeza, e também um Quixote do cinema.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de junho de 2005)