Canto do Inácio

Friday, May 14, 2010

BOGART VIVE CRIMINOSO EM BUSCA DO IMPOSSÍVEL
INÁCIO ARAUJO


Humphrey Bogart ganhou seu primeiro papel principal no filme "O Último Refúgio" porque Paul Muni e George Raft não toparam ser Roy "Mad Dog" Earle.

Feliz acaso, que beneficiou Boggie, o cinema em geral, o filme policial em particular e, mais ainda, o longa-metragem de Raoul Walsh. Porque esse é, no limite, um filme de amor, e Bogart conhece as minúcias do amor como ninguém.

Durante todo o tempo, ele tem a seu lado uma renegada como Ida Lupino, fascinante como sempre.

Mas é pela garota de uma família empobrecida pela Depressão dos anos 1930 que "Mad Dog" acredita se apaixonar. Ou de fato a ama? Pois a família da menina o faz lembrar da sua, talvez. O fato é que Roy Earle não nasceu já criminoso e mau.

Ao mesmo tempo, lá está a outra mulher, sempre ao seu lado: uma igual. Uma mulher possível. Sim, mas o que certos criminosos buscam é mesmo o impossível. Esta, em resumo, é a saga de Roy Earle.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de maio de 2010)

Monday, May 10, 2010

"KILLER" COLOCA MATADOR NA ROTA DA TRAGÉDIA
INÁCIO ARAUJO

"The Killer" é o filme mais cerebral de John Woo até hoje. Não só porque a maior parte dos tiros fatais é desferida na cabeça dos inimigos. Mas também no sentido em que esta é a trama mais complexa desenvolvida até aqui pelo cineasta de Hong Kong.

Por uma vez, ele recua de seu habitual gosto coreográfico em favor de uma intriga mais interiorizada, embora sem renunciar aos balés de violência que caracterizam seu estilo.

A história trata de um matador, Jeff (Chow Yun Fat), que, durante um tiroteio, cega por acidente a cantora Jenny. Culpado e apaixonado, Jeff aproxima-se dela.

Erro fatal para um matador. A moça torna-se a isca de que o investigador Lee (Danny Lee) precisa para chegar a Jeff. Lee é policial cujo método de prender criminosos supõe um conhecimento íntimo do inimigo, que o faça capaz de, por exemplo, adivinhar seus movimentos.

Daí por diante, o que se verá surgir é uma complexa trama de solidariedades que se armam e desarmam. Assim, Jeff topa fazer um último trabalho apenas para pagar a operação que restituirá a visão de Jenny.

Com Lee, seu entendimento será mais doloroso. Entre os dois homens obstinados com a idéia de cumprir o dever que se atribuem surge uma amizade ambígua: eles passam todo o tempo se admirando e se enfrentando.

Ao longo da trama -que vai engrossando cada vez mais-, ambos percebem que o mundo se divide entre a ética e a ausência de ética. E que, mesmo estando em campos opostos, pode-se partilhar certos princípios.

Essa constatação é como um novo ponto de partida. Na verdade, o filme corria o risco de se tornar um imenso contra-senso. Jeff é um matador profissional. Que relação existe entre a mais sórdida das profissões e a ética? Nenhuma, em princípio.

Mas, em "The Killer" - como em outros filmes de Woo -, os personagens só encontram sua identidade fora de si mesmos. Um homem só passa a ser sujeito de seus atos a partir do momento em que um fator externo leva à descoberta da subjetividade.

No caso de Jeff, esse fator é Jenny: a mulher surge em sua vida como hipótese de redenção de todos os males que o vitimaram e que ele transformou em agressividade. Jenny é a chance que ele vislumbra de assumir o próprio destino. Mas é essa chance mesmo que levará Jeff à tragédia de viver o próprio presente com olhos no futuro e, ao mesmo tempo, tentar se desembaraçar de um passado que se nega a ser apagado facilmente.

A maquinação notável com que Woo articula termos como amor, violência, amizade, traição, transitando da mais completa sordidez à poesia mais sublime, faz de "The Killer" um acontecimento invulgar. É um grande filme popular.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de maio de 1995)

WOO TRANSFIGURA VIOLÊNCIA QUATRO VEZES
INÁCIO ARAUJO

O mercado brasileiro de vídeo é do tipo tudo ou nada. No caso do chinês John Woo estamos na fase do tudo. Boa parte dos filmes de sua fase chinesa (anterior a "O Alvo", de 93, em que dirigiu Van Damme) já está disponível.

É melhor ir com calma, sob risco de enjoar do trabalho deste diretor de primeira linha. Em todo caso, não há como evitar "Fervura Máxima" (1992), um dos melhores filmes do diretor chinês.

A história não é tão diferente assim das outras. De um lado existe um policial intrépido (Chun Yun Fat, ator constante do diretor), disposto a desmantelar uma gangue. De outro, um policial 'infiltrado. Mas, quem é ele? Qual o verdadeiro inimigo? E, como decorrência, quem sou eu?

Essa eterna dúvida sobre a natureza das coisas, que o cineasta explora com frequência, está presente de maneira ostensiva em "Fervura Máxima". E com o máximo de talento, também.

A violência hiperbólica, tão exagerada que até leva o espectador a esquecer da violência, a articulação dos movimentos (ora rápidos, ora em câmera lenta), os excessos que levam a ver o filme como uma espécie de musical sem música -como pura coreografia- estão presentes em tempo integral. Convivem com uma trama intrincada, onde o cineasta contrabandeia elementos personalíssimos para o filme de gênero.

"Alvo Duplo 2" (1987) desenvolve os mesmos elementos, com menos brilho. No centro, está um ex-gângster que tenta levar vida honesta. Não é fácil. Os dois irmãos (um deles o mesmo Yun Fat, o outro, Leslie Cheung, já visto em "Adeus Minha Concubina", de Chen Kaige) que já estavam presentes em "Alvo Duplo" se empenham em combater a montanha de malfeitores circundantes.

No meio, a batelada habitual de mortes e algumas dores profundas (a filha do ex-gângster, embora confiada a um dos irmãos, morre). Apesar das virtudes evidentes, é um trabalho médio, que não concorre em interesse com os melhores filmes do diretor.

"The Killer" (1989) desenvolve ostensivamente um viés constante nos filmes de Woo, que é o catolicismo. Forma, com "Fervura Máxima", a dupla de seus melhores filmes pré-EUA. A história diz respeito a um matador (Yun-Fat) que, ao fazer seu último trabalho, cega, por acidente, a mulher por quem irá se apaixonar.

A maldição que se abate sobre ele (cujas transações com armas se passam numa igreja) de certo modo resume o olhar de Woo: o homem é aquele que tenta se limpar de uma maldição (pode-se chamar também de pecado) original. "The Killer" é brilhante.

Por fim, temos "A Jugular Blindada" (1979), um kung fu típico, bem anterior aos policiais que já se conheciam. O interesse vem, em boa parte, daí. Podemos compará-lo a centenas de kung fus que passaram nos cinema ou TV.

Woo está duzentos pontos acima da média. Evita o uso indiscriminado da zoom (a aproximação e distanciamento do personagem por meio da objetiva de foco variável), histórias idiotas de lutadores. A coreografia é ok e a construção dos personagens aproximam "A Jugular" mais dos velhos filmes japoneses de samurai do que do kung fu vulgar.

Apenas para dar um exemplo: a história começa com o casamento de um senhor. As pessoas comentam a beleza da noiva e observam que ela "deve ser de boa família".

A isso, o nobre replica que ela é uma prostituta que encontrou em um bordel. Logo depois, dezenas de espadachins inimigos invadem o local. O nobre se dá conta de que a própria noiva o havia traído. Comenta: "Eu te dei meu amor, como você fez isso?" A moça não se aperta: "É que ele me pagou o dobro." Comentário final do vilão: "Vê? As prostitutas são todas iguais".

Esse é o começo, chave de entrada numa intriga intrincada, à moda de Woo, que leva o espectador a fazer uma boa idéia do que seja o bom kung fu e confirma a suspeita de que o gênero é bem mais rico do que faz supor a produção marreta que normalmente chega até nós.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 9 de agosto de 1995)

WOO ACERTA NO "ALVO"
INÁCIO ARAUJO

Cada época constrói sua própria violência. Primeiro, foi Robert Aldrich, no início dos anos 50, quem introduziu a violência extrema, em "Vera Cruz".

Depois, veio Sam Peckimpah, cujo "Os Implacáveis" foi um dos belos momentos da carreira de Steve McQueen.

Por fim, nos anos 90 existe quase um leilão: quem faz o espetáculo mais violento para melhor chamar o público?

Mas John Woo está em outro registro. Seu "O Alvo", primeiro momento de plena dignidade na carreira de Van Damme, faz da violência um uso sublimado.

Ela explode em sua plenitude, mas é absorvida pelo caráter coreográfico. Ao mesmo tempo, é esse aspecto que libera o olhar para observar a sordidez que se desenvolve ao redor da violência. É um cineasta original, num filme muito forte.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de junho de 1996)

CINEMA POPULAR GANHA NOVA CHANCE
INÁCIO ARAUJO

Como o mundo não é perfeito, a passagem de John Woo de Hong Kong para Hollywood se fez acompanhar de fantasmas que, desde os anos 20, atormentam os cineastas que migram para os EUA: são chamados por causa do que fazem em seus países de origem, mas nos EUA são impedidos de fazer o que faziam.

É difícil dizer o que há de definitivamente bom ou mau nesse sistema. Impedido de produzir em plena liberdade, John Woo conseguiu, em "A Última Ameaça", realizar quase um "revival" daquelas fabulosas aventuras clássicas americanas: era límpido e dotado de um talento que, hoje, os realizadores norte-americanos relutam em mostrar.

Seu trabalho mais recente, "A Outra Face", representou um retorno à plena liberdade. É um filme muito parecido, de certo modo, com os policiais que realizava em Hong Kong, e ali o enfrentamento entre dois homens (John Travolta e Nicolas Cage) consiste em uma tortuosa viagem interior -de ambas as partes- e no reconhecimento da profunda identidade entre os dois inimigos.

A diferença é que dessa vez Woo desenvolveu o tema usando, a seu favor, toda a tecnologia hollywoodiana, o que não é nada pouco. O resto corre por conta de seu talento, de uma imaginação sem rédeas.

É magnífico, sem dúvida, embora possa parecer muito próximo, por vezes, dos policiais que fazia em Hong Kong, e que o revelaram como cineasta de interesse mundial.Mesmo em "O Alvo", seu primeiro filme norte-americano, Woo tinha como desenvolver seu senso coreográfico raro: as lutas de Van Damme, ali, são possivelmente as cenas que mais lembram os grandes musicais da Metro dos últimos anos, pelo colorido, pela intensidade, pela graça.

Primeiro time

Mesmo levando em conta os percalços que um realizador estrangeiro encontra nos EUA -incluída a adaptação a outro país-, Woo hoje é um cineasta que se distingue e pode ser incorporado ao primeiro time da América.

Ninguém representa hoje, mais do que ele, esse anacronismo que é o cinema popular.Isso se deve, em parte, de o cinema de Hong Kong ser eminentemente popular (lá a média de frequência per capita de espectadores aos cinemas é das mais altas do mundo), o que é um tanto diferente do cinema de massas que, há duas décadas, domina Hollywood.

Os resistentes da América (Coppola, Scorsese, De Palma e alguns mais) estão cada vez mais acossados. John Woo representa um sopro novo de criatividade no cinema norte-americano. Espera-se que o cinema dos EUA saiba aproveitar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de setembro de 1997)

JOHN WOO REENCONTRA O ESPÍRITO DE AVENTURA
INÁCIO ARAUJO

Foi preciso importar um diretor de Hong Kong para que o cinema americano voltasse a ter filmes de aventura com espírito de aventura.

Essa é a maior contribuição de "A Última Ameaça": basta vê-lo para notar a precariedade de fórmulas tipo "Máquina Mortífera".

A intriga é simpaticamente absurda: Travolta faz um major aviador passado para trás nas promoções e disposto a roubar duas ogivas nucleares para efeito de chantagem. Quem o enfrenta é um ex-amigo, o tenente Hale (Slater).

O filme é orientado por um sentimento nostálgico: a vontade de reatar com a tradição clássica do filme de aventura americano.

Isso leva John Woo a abdicar em parte da originalidade que tem marcado seus trabalhos: nada das grandes surpresas, das coreografias alucinantes de outros filmes. Mas nessa súbita conversão ao papel de aprendiz também há ganhos.

Desde que os efeitos especiais se tornaram a real estrela dos filmes, somos submetidos a uma inflação de explosões acompanhadas de personagens apenas esboçados pelos roteiristas.
"A Última Ameaça" explora os efeitos melhor do que 99% dos filmes americanos atuais.

Uma explosão, uma queda de avião, aqui, não são apenas efeitos plásticos, mas um verdadeiro drama visual, que nos impressiona e, ao mesmo tempo, nos toca. Não são introduzidos gratuitamente, mas como decorrência necessária da ação.

Ao mesmo tempo, o filme trabalha bem com personagens arquetípicos, captados em elementos básicos (frustração, valentia, fraqueza etc.). Os atores, em especial Travolta, ajudam a criar a identificação entre protagonistas e platéia.

O risco disso tudo consiste em o filme poder ser visto, por parte do público, como uma bela velharia.

Com efeito, os filmes do tipo explode-e-corre são banais, mas modernos. Respondem a um mundo dominado pela tecnologia. Aqui, a tecnologia é muito bem usada, mas como elemento subsidiário.

"A Última Ameaça" parece representar um momento intermediário entre as virtudes que Woo já demonstrou (a inventividade na ação, o talento no uso da câmera) e algo que está por vir: a capacidade de incomporar a tecnologia como motivo do filme, sem cair na banalidade das fórmulas. É o que fazem De Palma, Spielberg, Cameron.

Por ora, o espectador pode ir ao cinema certo de que verá um espetáculo de fato espetacular.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 5 de abril de 1996)

Sunday, May 02, 2010

FILME RENOVA TEMAS DE WOODY ALLEN
INÁCIO ARAUJO


Os fiéis de Woody Allen já conhecem Boris Yellnikoff (Larry David) de algum lugar. Afinal, ele costumava frequentar seus filmes dos anos 70. É um desses intelectuais cheios de si, sempre em busca da verdade absoluta e sempre prontos a se apaixonar pela primeira adolescente que passe à sua porta.

A diferença é, talvez, que Boris envelheceu. À pretensão acrescentaram-se algumas manias. Talvez alguns fracassos.

Ele é o autoproclamado gênio, quase indicado para o Nobel, que ganha a vida dando aulas de xadrez a crianças e se diverte proclamando o fracasso da espécie humana. Será um gênio ou um cretino?

Em todo caso, Boris é o tipo perfeito para encarnar aquilo que, desde sempre, melhor funciona em Woody Allen: uma mistura de comédia e drama, em que a gravidade das coisas apenas se insinua sob o humor.

E "Tudo Pode Dar Certo" é, com as devidas distâncias, uma comédia dramática na linha de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" ou "Manhattan".

Não é mais a psicanálise que dá o tom: o tempo passou o bastante para que Boris tenha a ilusão de se curar. Aliás, ele não acha que tenha nada do que se curar: suas certezas são inarredáveis. A primeira delas começa a ruir logo nos primeiros minutos, quando surge à sua porta Melody, uma loirinha do Mississipi. O misantropo não consegue vencer seu impulso humanista e não só acolhe a moça em sua casa como, pouco depois, está vivendo com ela.

Se esse encontro absurdo pode acontecer, tudo mais pode acontecer. Por exemplo, a vinda, do Sul, da mãe de Melody, fanática religiosa que, em Nova York, se transformará.

De certo modo, essas coisas podem acontecer porque Allen aqui reencontra, na maturidade, tipos de Nova York aos quais já nos apresentou. Se ele retoma seu gosto pelas caricaturas, convém não esquecer que Woody Allen realiza aqui um conto de Natal, isto é, reencontra aquele gênero de filmes pródigos em milagres, em que se cantava a maravilha da vida.

Aqui não há milagres. Existe uma intervenção copiosa do acaso. Com isso, Allen fica, outra vez, como nos seus melhores trabalhos: com um pé no passado e outro no presente, um na tradição e outro no prazer de constatar a permanência de certos sentimentos - desde que renovados, é claro. É isso que almeja e é a isso que, afinal, chega: um filme otimista a partir de um pessimista. Um filme em que a vida parece pródiga em milagres, mas eles não vêm de Deus. Um filme laico neste tempo de religiosidade.

Não faltará, é verdade, quem reclame que, por trás de Larry David, pode-se ver Allen, o ator.

É verdade. Isso acontece com frequência, quando Allen dirige sem ser ator: como se gostasse de se ver em um dos personagens. É um problema menor.

Na verdade, um não problema neste que, a mim, parece o trabalho mais estimulante do autor ao menos nesta década.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de abril de 2010)

Saturday, May 01, 2010

CIMINO RETRATA O INFERNO DA GUERRA
INÁCIO ARAUJO


Não raro, o destino de um filme independe de suas qualidades estéticas e, ao contrário, depende muito do que representa no momento.

Em 1978, "O Franco Atirador" levou o Oscar não só por virtudes cinematográficas que são claras, mas por marcar a reconciliação da América consigo mesma após a Guerra do Vietnã.

Na ocasião, foi passado para trás "Amargo Regresso", de Hal Ashby, que tratava a participação americana no conflito em termos mais críticos.

Michael Cimino é um diretor bem mais forte que Ashby, mas isso não define prêmios.
Sobretudo porque o essencial de "O Franco Atirador" era relatar o inferno da experiência na guerra e o retorno como uma espécie de reencontro, apesar de tudo, com uma situação paradisíaca.

Até hoje se criticam no filme inexatidões como a roleta russa que o vietcongue força os rapazes a praticar.

O fato de não ter acontecido não muda nada: era o inferno que Cimino queria e conseguiu mostrar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 9 de abril de 2010)