Canto do Inácio

Tuesday, September 05, 2006

Ferrara contesta obra de Deus, em 'Os Chefões'

INÁCIO ARAUJO

Um gângster armado está diante do assassino de seu irmão. Em vez de matá-lo, os dois se põem a conversar sobre verdade, fé, justiça, escolha.
Estamos vendo um filme de Abel Ferrara, claro. "Os Chefões", no caso. Título que começa por ser a tradução infidelíssima de "The Funeral" e só se justifica como tentativa desesperada de salvar um fracasso comercial previsível.
Não há chefões. Há apenas o funeral de Johnny (Vincent Gallo), um jovem comunista dos anos 30, irmão do gélido Ray (Christopher Walken) e do emocional Chez (Chris Penn).
É gente que mata com facilidade, embora isso não tenha importância para a trama. Toda a questão gira em torno de encontrar o assassino de Johnny e vingar sua morte -o que aparentemente situa "Os Chefões" perto das convenções do filme de gângster.
Mas ao longo da trama veremos que não é bem assim.
Os pequenos marginais são, na verdade, motivo para Ferrara (em associação com seu roteirista habitual, Nicholas St. John) colocar questões recorrentes em sua obra.
A fé é a mais evidente delas. Como em quase todos os seus filmes, abundam os crucifixos e as imagens do Cristo morto, que Ferrara utiliza para desenvolver sua teologia particular.
Em seu ponto de vista -pouco canônico- não há um Cristo que morreu para salvar a humanidade. Ao contrário, é como se cada homem devesse seguir a mesma trajetória e como se a vida não fosse outra coisa senão uma longa crucificação.
Esse martírio é dobrado pela infeliz circunstância de que não somos filhos de Deus. Isso nos abre para o duvidoso direito à escolha.
O livre-arbítrio, a possibilidade de dizer "não", é o que faz dos personagens uma mistura de fé e existencialismo sartreano. Porque o direito de escolha é, a rigor, teórico, como fica claro na cena em que Ray, ainda menino, é chamado pelo pai a apertar o gatilho e tirar a vida de um homem.
"Os Chefões" é um filme compreensivelmente escuro, noturno, povoado por sombras amarguradas, que ou raciocinam todo o tempo -como Ray ou Johnny- ou substituem o pensamento pela insânia -como Chez.
O mundo de Ferrara é um pesadelo porque Deus deu aos homens a liberdade de escolha, com uma mão, e, com outra, tirou-a. Em suma, Deus fez um mau serviço e, se a nós, homens, é reservado o inferno, a sorte de Deus não deve ser tão diferente.
É um filme muito estranho, em que as mulheres (em particular Annabella Sciorra e Isabella Rossellini, casadas com Ray e Chez, respectivamente) sofrem duas vezes: ao lado do caixão e ao lado de seus maridos. Em todo caso, podem se iludir pensando que fizeram um erro de escolha (se o marido fosse outro, a vida seria outra).
É um filme mais duro do que "Vício Frenético" (1992), com Harvey Keitel, e mais memorável, talvez, do que "Olhos de Serpente" (1993), com Madonna. Como ambos, porém, tem um problema: toda a direção gira em torno de pôr em relevo o esgarçamento do cristianismo em Ferrara.

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