Ferrara contesta obra de Deus, em 'Os Chefões'
INÁCIO ARAUJO
Um gângster armado está diante do assassino de seu irmão. Em vez de matá-lo, os dois se põem a conversar sobre verdade, fé, justiça, escolha.
Estamos vendo um filme de Abel Ferrara, claro. "Os Chefões", no caso. Título que começa por ser a tradução infidelíssima de "The Funeral" e só se justifica como tentativa desesperada de salvar um fracasso comercial previsível.
Não há chefões. Há apenas o funeral de Johnny (Vincent Gallo), um jovem comunista dos anos 30, irmão do gélido Ray (Christopher Walken) e do emocional Chez (Chris Penn).
É gente que mata com facilidade, embora isso não tenha importância para a trama. Toda a questão gira em torno de encontrar o assassino de Johnny e vingar sua morte -o que aparentemente situa "Os Chefões" perto das convenções do filme de gângster.
Mas ao longo da trama veremos que não é bem assim.
Os pequenos marginais são, na verdade, motivo para Ferrara (em associação com seu roteirista habitual, Nicholas St. John) colocar questões recorrentes em sua obra.
A fé é a mais evidente delas. Como em quase todos os seus filmes, abundam os crucifixos e as imagens do Cristo morto, que Ferrara utiliza para desenvolver sua teologia particular.
Em seu ponto de vista -pouco canônico- não há um Cristo que morreu para salvar a humanidade. Ao contrário, é como se cada homem devesse seguir a mesma trajetória e como se a vida não fosse outra coisa senão uma longa crucificação.
Esse martírio é dobrado pela infeliz circunstância de que não somos filhos de Deus. Isso nos abre para o duvidoso direito à escolha.
O livre-arbítrio, a possibilidade de dizer "não", é o que faz dos personagens uma mistura de fé e existencialismo sartreano. Porque o direito de escolha é, a rigor, teórico, como fica claro na cena em que Ray, ainda menino, é chamado pelo pai a apertar o gatilho e tirar a vida de um homem.
"Os Chefões" é um filme compreensivelmente escuro, noturno, povoado por sombras amarguradas, que ou raciocinam todo o tempo -como Ray ou Johnny- ou substituem o pensamento pela insânia -como Chez.
O mundo de Ferrara é um pesadelo porque Deus deu aos homens a liberdade de escolha, com uma mão, e, com outra, tirou-a. Em suma, Deus fez um mau serviço e, se a nós, homens, é reservado o inferno, a sorte de Deus não deve ser tão diferente.
É um filme muito estranho, em que as mulheres (em particular Annabella Sciorra e Isabella Rossellini, casadas com Ray e Chez, respectivamente) sofrem duas vezes: ao lado do caixão e ao lado de seus maridos. Em todo caso, podem se iludir pensando que fizeram um erro de escolha (se o marido fosse outro, a vida seria outra).
É um filme mais duro do que "Vício Frenético" (1992), com Harvey Keitel, e mais memorável, talvez, do que "Olhos de Serpente" (1993), com Madonna. Como ambos, porém, tem um problema: toda a direção gira em torno de pôr em relevo o esgarçamento do cristianismo em Ferrara.
INÁCIO ARAUJO
Um gângster armado está diante do assassino de seu irmão. Em vez de matá-lo, os dois se põem a conversar sobre verdade, fé, justiça, escolha.
Estamos vendo um filme de Abel Ferrara, claro. "Os Chefões", no caso. Título que começa por ser a tradução infidelíssima de "The Funeral" e só se justifica como tentativa desesperada de salvar um fracasso comercial previsível.
Não há chefões. Há apenas o funeral de Johnny (Vincent Gallo), um jovem comunista dos anos 30, irmão do gélido Ray (Christopher Walken) e do emocional Chez (Chris Penn).
É gente que mata com facilidade, embora isso não tenha importância para a trama. Toda a questão gira em torno de encontrar o assassino de Johnny e vingar sua morte -o que aparentemente situa "Os Chefões" perto das convenções do filme de gângster.
Mas ao longo da trama veremos que não é bem assim.
Os pequenos marginais são, na verdade, motivo para Ferrara (em associação com seu roteirista habitual, Nicholas St. John) colocar questões recorrentes em sua obra.
A fé é a mais evidente delas. Como em quase todos os seus filmes, abundam os crucifixos e as imagens do Cristo morto, que Ferrara utiliza para desenvolver sua teologia particular.
Em seu ponto de vista -pouco canônico- não há um Cristo que morreu para salvar a humanidade. Ao contrário, é como se cada homem devesse seguir a mesma trajetória e como se a vida não fosse outra coisa senão uma longa crucificação.
Esse martírio é dobrado pela infeliz circunstância de que não somos filhos de Deus. Isso nos abre para o duvidoso direito à escolha.
O livre-arbítrio, a possibilidade de dizer "não", é o que faz dos personagens uma mistura de fé e existencialismo sartreano. Porque o direito de escolha é, a rigor, teórico, como fica claro na cena em que Ray, ainda menino, é chamado pelo pai a apertar o gatilho e tirar a vida de um homem.
"Os Chefões" é um filme compreensivelmente escuro, noturno, povoado por sombras amarguradas, que ou raciocinam todo o tempo -como Ray ou Johnny- ou substituem o pensamento pela insânia -como Chez.
O mundo de Ferrara é um pesadelo porque Deus deu aos homens a liberdade de escolha, com uma mão, e, com outra, tirou-a. Em suma, Deus fez um mau serviço e, se a nós, homens, é reservado o inferno, a sorte de Deus não deve ser tão diferente.
É um filme muito estranho, em que as mulheres (em particular Annabella Sciorra e Isabella Rossellini, casadas com Ray e Chez, respectivamente) sofrem duas vezes: ao lado do caixão e ao lado de seus maridos. Em todo caso, podem se iludir pensando que fizeram um erro de escolha (se o marido fosse outro, a vida seria outra).
É um filme mais duro do que "Vício Frenético" (1992), com Harvey Keitel, e mais memorável, talvez, do que "Olhos de Serpente" (1993), com Madonna. Como ambos, porém, tem um problema: toda a direção gira em torno de pôr em relevo o esgarçamento do cristianismo em Ferrara.
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