Canto do Inácio

Tuesday, July 13, 2010

OZON REPRODUZ VIA COMO EXTENSÃO DO SONHO
INÁCIO ARAUJO


O primeiro espanto chega cedo, ainda nos créditos: "Angel" é a adaptação de um romance de Elizabeth Taylor. Não a atriz, mas uma escritora inglesa (1912-1975). Durante todo o filme, no entanto, é da atriz que nos lembraremos, pois é ao cinema dos anos 40/50, às produções da Metro e ao technicolor que somos remetidos. Tudo, em particular a música e a direção de arte, carregam esse esforço explícito de fazer "à maneira de".

A opção maneirista faz sentido, já que se trata, num primeiro nível, de relatar a vida de Angel Deverell, jovem pobre da Inglaterra que vira da noite para o dia um fenômeno literário tipo Paulo Coelho nos anos que antecedem a Primeira Guerra.

Angel é um caráter forte: diz o que pensa, vai atrás do que quer, nunca recua. O sucesso precoce premiará sua imaginação fértil e romântica, mas em que a intuição supera o trabalho intelectual. Suas qualidades a levarão a possuir Paradise, a propriedade que ambicionara na infância, e a casar com Ermé, o homem que deseja.

Já dá para notar a proximidade entre essa história e certas antigas produções hollywoodianas. Daqui por diante, talvez seja o caso de acentuar as diferenças, o que faz de "Angel" um filme, afinal, contemporâneo. Angel Deverell tem o lado autista acentuado. Como percebe Ermé, ela faz sucesso porque se relaciona consigo mesma, não com seus leitores. O tempo mostrará que Angel só vê e aceita o mundo como extensão de seus desejos. Esse jeito Scarlett O'Hara levará Ozon a acentuar o lado melodrama romântico de "Angel" e propiciará uma descrição original da vida inglesa no início do século, em contraste com a reconstituição de época convencional dos filmes de costumes britânicos.

O interesse do filme, porém, não vem daí, mas do tipo de vida dupla que leva Angel Deverell. Como a imaginação determina seu sucesso e, em grande medida, seu destino, há aí uma incidência do mundo imaginário sobre o real. O "mundo de sonhos" que nos prometiam os filmes de Hollywood (por duas horas) é aquele em que Angel viverá em tempo integral.

Está certo que, mais tarde, ela poderá perguntar se viveu o real ou o imaginário. De certa forma é o que o filme diz: talvez a vida não seja mais que um sonho. Pode ser que a idéia reproduza mais o conformismo hollywoodiano que as questões com que um Borges duplicava a percepção do mundo, mas é levada com convicção -e rende duas horas de entretenimento.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 07 de março de 2008)

FRANÇOIS OZON EXPLORA PRIMEIRO TIME DE ESTRELAS
INÁCIO ARAUJO


"Oito Mulheres " se propõe, inicialmente, como "whodunit" (quem é o culpado?). Um homem é assassinado em sua própria casa, numa noite de neve. Ali estão oito mulheres, da sogra às duas filhas, passando por mulher, cunhada, criadas. Os fios telefônicos são cortados; não existe possibilidade de deixar a casa e informar o fato à polícia.

Resta às mulheres se improvisar em detetives e levar adiante uma trama tipo Agatha Christie, em que conversar equivale a investigar, e investigar, a buscar as causas secretas que poderiam levar cada uma delas àquele gesto.

Trata-se, em primeiro lugar, de um filme de atrizes: de Danielle Darrieux a Virginie Ledoyen, passando por Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Fanny Ardant, temos aí três ou quatro gerações do primeiro time de estrelas francesas.

Em um segundo nível, trata-se de um filme explicitamente teatral, não só por se desenrolar basicamente em um cenário (a sala de uma mansão), como porque cada uma das mulheres representa um papel. Ninguém se espante, portanto, de se ver diante de interpretações também teatrais.

À medida que se desenvolve, o "whodunit" ganha novos contornos. Existe um quê musical (cada uma delas interpreta uma canção, o que lembra o artifício usado antes por Alain Resnais em "Aquela Velha Canção", de 1997). A comédia também se insinua.

Por fim, o espectador se dá conta de que o caráter detetivesco da trama é, antes de mais nada, um recurso pelo qual as personagens abandonarão, pouco a pouco, os papéis sociais que representam para se mostrar tal qual são.

O assassinato (e a descoberta da assassina) se torna o acessório. Cada uma das oito mulheres carrega uma culpa (ou várias) e um segredo, assim como nós. É como se o filme nos chamasse a refletir sobre a vida como indispensável exercício de tolerância em face dos defeitos do ser humano.

Ou, em outras palavras, a imperfeição é nossa condição. Se retiramos a capa de sociabilidade que existe em um homem, descobrimos sem grande dificuldade que se trata de um monstro.

Se retiramos a capa de todos eles (ou de todas elas, no caso) -que é a proposta do filme-, talvez estejamos a caminho de encontrar uma nova sociabilidade e uma nova compreensão.

O raciocínio parece incontestável e, sobretudo, aplicável a um tempo em que a humanidade já esgotou mais ou menos todo o repertório de iconoclastia disponível. Os pobres já desmascararam os ricos e vice-versa. Os filhos já desnudaram os pais e vice-versa.

Resta que existe algo de estranho nessa operação. Se todos nos desvendamos mutuamente, tudo também se torna inoperante.

Cria-se uma espécie de democracia do defeito que não reconhece hierarquia e de certa forma aplasta os problemas humanos, limitando-os à sua dimensão psicológica. Talvez se originem daí, e do caráter excessivamente demonstrativo da trama, os não raros momentos de monotonia que permeiam o novo longa de Ozon.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 12 de setembro de 2002)

FRANÇOIS OZON DESMONTA EXPECTATIVAS LEVANDO A INCERTEZAS
INÁCIO ARAUJO


Desaparecer é uma coisa, morrer é outra. O segundo caso nos leva ao território da certeza, o primeiro só traz dúvidas.

É bem nesse âmbito que vive Charlotte Rampling (Marie) em "Sob a Areia". Logo no início do filme, seu marido desaparece tomando um banho de mar. Ou melhor: desaparece. Se se afogou tomando banho de mar, se sumiu como as pessoas que saem para comprar cigarro e nunca mais voltam, se se suicidou no mar ou em qualquer outro lugar, isso é coisa que não se pode saber.

Mais: eles formam um velho casal feliz. Não apaixonado à maneira juvenil, mas com um amor que se pode chamar de sólido -realizado, mas não terminado.

Quando as pessoas morrem, resta aos que sobrevivem um longo trabalho de luto: uma adaptação à nova realidade, o acerto de contas com as culpas etc..

Como Jean (Bruno Cremer) não morreu, mas está desaparecido, a situação de Marie é mais angustiante, e é dessa angústia que o filme de François Ozon trata.

Ou antes: estamos diante de uma situação em que o fio que separa o real do imaginário se torna tremendamente tênue. Marie precisa continuar a viver. Dá aulas de inglês, encontra-se com os amigos. Mas Jean nunca deixa de estar com ela. Talvez não se deva dizer que ele é um fantasma assombrando sua vida. Como o amor entre os dois, suas aparições são suaves, nada espetaculosas, nem assustadoras. Jean é uma imagem, uma presença.

Podemos pensar em filmes em que mortos aparecem (de "Ghost" a "Os Outros") como fantásticos, no sentido em que a imaginação se impõe à realidade, ou antes, em que a realidade deriva de nossa capacidade de imaginação. O que François Ozon parece fazer aqui é cutucar essa distinção. Em "Sob a Areia", o espectador permanece em estado de alerta, sem saber ao certo com o que está lidando.

Esse é o encanto do filme. Embora saibamos que a presença de Jean resulta da imaginação de Marie, sabemos que ela não é uma psicótica.

O marido não é uma visão, não surge do além. As reações de Marie, a maneira como fala do marido são, afinal, compreensíveis. Os amigos podem ficar um tanto estarrecidos com o que ela diz, mas não alarmados.

Desde "Sitcom", Ozon tem se pautado por um cinema que, se ainda não chega a fazer dele um dos grandes cineastas franceses em atividade, em todo o caso tem o dom de desmontar expectativas, de não se acomodar ao sentido dado das coisas.

Aqui, Ozon conduz o espectador a uma espécie de flutuação, digamos assim, na medida em que todo o tempo destrói nossa expectativa (que tem a ver com sentidos dados, sejam eles o luto, a loucura, o fantástico ou qualquer outro) e nos leva a um estado de incerteza, em que pouco a pouco nos enredamos, ao lado de Charlotte Rampling, numa aventura de que desconhecemos não só o final, mas em que os dados de que dispomos não permitem alicerçar nenhuma certeza quanto ao chão por onde se anda.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 21 de dezembro de 2001)

CLICHÊ POLICIAL RESSOA NA BOA ATMOSFERA DE FRANÇOIS OZON
INÁCIO ARAUJO

Sarah Morton é uma veterana, bem-sucedida e mal-humorada escritora inglesa de livros de mistério. À beira de uma crise criativa e de um colapso nervoso, é remetida pelo editor à casa deste último, no interior da França.

E tudo começa muito bem para Sarah: os novos ares, o silêncio e a paisagem parece que vão trazer-lhe de novo as idéias. Isso até que aparece Julie, filha do editor. Com Julie vêm o barulho, a falta de educação e a inquietude.

A inquietude é o mais importante. Julie representa, no estado mais agressivo que Sarah pode conceber, a juventude, a beleza e o desregramento dos sentidos. Para uma mulher madura, isso é inquietante: a cada noite, Julie aparece com um companheiro.

Sarah ressente-se disso, não sabemos exatamente por quê: ou porque é reprimida mesmo, ou porque seu tempo de ser desejada já passou -mas não o de desejar. O certo é que François Ozon foi muito feliz ao escalar duas atrizes de características opostas para os papéis centrais. Charlotte Rampling, que faz Sarah, não consegue deixar de ser distinta. Sabe se exprimir com economia de meios. Ludivine Sagnier, ao contrário, é aquilo que o crítico Rubem Biáfora chamava de "beleza vulgar".

Não é uma má atriz. Ela é dotada de um natural espalhafato, cujo signo mais evidente são os seios volumosos, que Ozon faz questão de destacar. Estabelecido o contraste, segue-se a distância, o confronto entre as duas, cujo "leit motif" é o livro que Sarah escreve. E Ozon tem o mérito inquestionável de criar uma boa atmosfera.

Como é, no entanto, autora de livros policiais, é justo que uma intriga dessa natureza venha bater à sua porta. E que use sua experiência num crime que acontece bem perto de si. Nesse ponto, porém, é que as coisas começam a andar menos bem: o clichê é estridente demais para não ter ressonância sobre o restante da trama.

É verdade que Ozon tenta consertar as coisas inserindo, no final, uma vinheta "inteligente" sobre o caráter intercambiável da realidade e da ficção. É a "surpresa final" e não seria justo falar sobre ela. Digamos apenas que a idéia que o filme procura transmitir, a da intimidade entre criador e criação, acaba não sendo resgatada.

E François Ozon, que parece estar construindo uma carreira de altos ("Gotas d'Água em Pedras Escaldantes") e baixos ("Oito Mulheres"), continua na mesma tocada. Aqui o alto e o baixo estão no mesmo filme.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de janeiro de 2004)

Thursday, July 01, 2010

BELEZA TOMA CONTA DA SELVA EM "MOGAMBO"
INÁCIO ARAUJO

"Mogambo" leva ao Quênia, na África, duas belas mulheres: Ava Gardner e Grace Kelly. Ambas têm a idéia de se apaixonar por Clark Gable, caçador especializado em fornecer animais para zoológicos de todo o mundo.

Ambas se apaixonam por Clark. E Clark, que não é bobo nem cego, se interessa por ambas. Escolher, porém, não será fácil. Num primeiro momento, ele não está nada a fim a levar em consideração o fato de Grace Kelly ser casada. Aliás, ela já chegou ali disposta a separar-se do marido.

Se Linda é a mulher culta e fina, Ava Gardner compõe o tipo oposto: ex-corista, com um passado duvidoso nas costas e com um quê vulgar. Dá para passar por cima desses detalhes diante de tamanha beleza. Mas Grace também é belíssima. Até aí, empate.

O que John Ford colocará ao longo do filme é a descoberta de si mesmo por um homem. "Quem eu sou?" é a questão que o homem se proporá, saiba ou não que a está colocando.

O problema será mais sutil do que em outras vezes que foi colocada pelo diretor. Não existe uma questão radical de caráter, que permite à mulher do povo, desprezada pela leis sociais, revelar seu valor às custas das demonstrações de fraqueza da gente fina.

Era o que acontecia, por exemplo, em "No Tempo das Diligências" (1939). Esse xadrez desenvolvido ao longo de caçadas confere ao filme uma sutileza rara, que talvez o tenha levado a ser subestimado. Descobrir quem é a mulher de sua vida equivale a descobrir, para Clark Gable, o que é sua vida: a beleza de "Mogambo" passa, em grande parte, por aí.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 11 de maio de 1994)

FORD VESTE A FARDA EM "FORT APACHE"

INÁCIO ARAUJO

John Ford já estava no Oeste nos tempos do mudo. Fez o notável "Cavalo de Aço" (1924). Nos anos 30, dirigiu "No Tempo das Diligências". Nos 50, a obra-prima "Rastros de Ódio".

Ele podia dar explicações práticas para sua preferência por faroestes. Longe dos estúdios, também estava longe do controle dos produtores. E Ford não era propriamente dócil a produtores. Mas isso não chega a explicar seu trabalho.

"Fort Apache" (nos cinemas, "Sangue de Herói") é o filme que abre a trilogia sobre a Cavalaria baseada em livros de James Warner Beulah, realizada entre 1948 e 1952.

Ali, o coronel Thursday (Henry Fonda) chega para comandar um forte no Oeste. É um empedernido "wasp" (sigla que designa os brancos, anglo-saxões, protestantes – o que existe de nobreza nos EUA).

Para Thrusday, o Exército é um lugar onde homens gloriosos realizam feitos idem. Sob a solene etiqueta militar, ele despreza seus homens. São oficiais, como John Wayne, ou simples sargentos, com Victor McLaglen, mas sempre plebeus. Thrusday também ignora os índios, a quem vê como as alavancas de sua glória futura.

Essa incapacidade de olhar a realidade levará Thursday à própria desgraça (o filme é uma versão disfarçada do massacre de Little Big Horn, quando os índios derrotaram as forças do general Custer).

Ora, as desgraças de Thursday são proporcionais às experiências de sua filha. Ela, uma mulher do Oeste: vê o mundo como é, limpa-se de preconceitos e trata de se apaixonar pelo filho de um sargento.

É verdade que o coronel Thrusday honrará o cerimonial do Exército, seus rituais, sobretudo ao comparecer – contrafeito – ao baile dos suboficiais (um dos pontos altos do filme).

O essencial é que Ford reencontra aqui seu ambiente, seu Oeste, sua querida Cavalaria, e reafirma a idéia-chave de seus filmes: a de uma América construída por homens comuns, não por seres de exceção. "Fort Apache" é um belo Ford.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de maio de 1994)

FORD ACENTUA CRÍTICA A BRANCOS
INÁCIO ARAUJO

"Terra Bruta" é visto com frequência, e um pouco injustamente, como um subproduto de "Rastros de Ódio", que hoje é considerado a obra-prima de John Ford.

Com todo o respeito pelos "Rastros", "Terra Bruta" é uma variação no mínimo interessantíssima do mesmo tema. James Stewart é o xerife; Richard Widmark, o oficial. Em dado momento, eles devem entrar em território comanche para resgatar prisioneiros brancos.

O confronto entre brancos e índios é isento aqui da paixão que caracterizava o personagem de John Wayne em "Rastros de Ódio". São, antes, dois profissionais que cumprem uma missão. Profissionais bem diferentes, a rigor: Widmark é um militar íntegro, enquanto Stewart é um corrompido.

Mas o olhar cínico que Stewart lança sobre as coisas — essa espécie de descompromisso com a ordem que caracteriza seus atos — é também o que lhe permitirá ver a realidade que terá diante de si com maior elasticidade.

À parte um diálogo de minutos e minutos entre os dois homens (um longo plano à beira de um rio), momento antológico do qual se perde muito na versão dublada, "Terra Bruta" é sintomático do último John Ford.

Em sua trajetória, mostra-se cada vez mais compreensivo em relação aos índios e mais irascível quanto aos brancos (cuja intolerância, aqui, é encarnada pelo oficial). Ao mesmo tempo, o papel da mulher é cada vez menos decorativo, adquire uma essencialidade que já prefacia sua última proeza: "Sete Mulheres", de 1966.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 15 de março de 1995)

FORD LUTA COM TECHNICOLOR
INÁCIO ARAUJO

A saga dos pioneiros da Nova Inglaterra, associada à luta pela independência dos Estados Unidos, é menos clara do que costumam ser os filmes americanos. O que se poderá comprovar neste "Ao Rufar dos Tambores".

A partição evidente entre bons e maus, mocinhos e bandidos, acaba se complicando. Existem ingleses, índios, franceses, voluntários da independência, colonos.

Os índios, que o faroeste consagrou - na era clássica - como vilões da história, costumam, nesta saga e ao contrário do faroeste - oscilar de um lado para outro, sempre na condição de objetos da história, nunca de sujeitos a quem se atribui uma função definida, além de estar ali estragando uma trama de brancos.

Daí que uma das características interessantes deste filme seja centrar fogo na história dos colonos, em particular do casal Henry Fonda/Claudette Colbert. É na linha de Ford: buscar o heroísmo do cotidiano, pôr em relevo o que há de incomum no homem comum.

Ainda assim, pode-se pensar em outros filmes de Ford mais animadores, nesse período: "No Tempo das Diligências", "A Mocidade de Lincoln", "As Vinhas da Ira", "Caminho Áspero" (todos feitos entre 39 e 41) são superiores por diferentes motivos.

O que eles têm em comum é o preto-e-branco, além de um cenário natural menos exuberante, menos invasivo. Mesmo sendo John Ford, esse cenário e as cores do technicolor - que usava pela primeira vez - interferem no conjunto, como uma espécie de ruído que se imiscui e se constitui numa ameaça permanente a rondar a essência do filme.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia9 de junho de 1995)

"TERRA BRUTA" OBSERVA DILACERAÇÃO AMERICANA
INÁCIO ARAUJO

"Terra Bruta" tem o encanto de juntar James Stewart e Richard Widmark. O primeiro, é um xerife bonaçhão. O segundo, um militar tenso. As diferenças entre as personalidades e natureza de suas ocupações aparecerão com clareza ao longo de uma história próxima à de "Rastros de Ódio" (1956), considerado a obra-prima de John Ford.

É verdade que em TV a melhor cena –um longo diálogo entre os dois homens, à beira de um rio– perderá muito de seu encanto: as pausas e subentendidos que norteiam essa conversa ficam sem a força de algo concebido no momento. O som de estúdio (independente do esforço dos dubladores) abafa algo que se constrói no instante.

A trama propriamente dita diz respeito à busca de brancos raptados pelos índios. E John Ford, que estava no seu melhor momento, tira todas as consequências desse conflito trágico. Pode-se sempre preferir "Rastros de Ódio" (imbatível no ramo), mas "Terra Bruta" continua um filme vivo como poucos, onde toda a força de Ford para trabalhar o mito americano volta-se para a observação de seu dilaceramento.

É um desses filmes de Ford em que a dureza (sobretudo do meio para o fim) triunfa sobre a leveza, sem que se perca nada do encanto.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 22 de março de 1994)

FORD ENSINA A FILMAR BIOGRAFIAS
INÁCIO ARAUJO


Nem só de faroestes se fez a vida de John Ford. Apesar das aparências, ele sabia se exercitar com a mesma desenvoltura em outros setores. Em alguns deles era imbatível (caso da saga irlandesa). No caso das biografias, seus filmes seriam capazes de ensinar muita gente, ainda hoje.
Estão nesta categoria "A Mocidade de Lincoln" (1939), "A Paixão de uma Vida" (1955) ou "Asas de Águia".

O caso de Frank "Spig" Wead é um pouco diferente. Aviador naval, acrobata, seu conflito central é entre a dedicação à pátria e à família. A renúncia à família, no mais, é tão ostensiva que sua mulher Minne (Maureen O'Hara), a horas tantas lhe dá um basta.

Nesse sentido, não faltam peripécias à trama: o retorno arrependido à família, o acidente (queda de uma escada) que o torna paralítico, a tentativa de, ainda assim, estar perto da tropa. Uma história através da qual Ford ensina que uma biografia não é uma sequência de fatos. Mas a ordenação de uns tantos fatos a partir de uma idéia. Algo que parece não ter sido assimilado pelo brasileiro "Lamarca", que está para entrar em cartaz.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 27 de abril de 1994)

FILMES MOSTRAM O POÉTICO CINEMA DE JOHN FORD
INÁCIO ARAUJO


Uma observação preciosa no documentário sobre John Ford que o TCM exibiu recentemente diz respeito à diferença de estilo entre seus filmes dos anos 1930 e 1940.

Nos anos 30, os filmes têm cara de estúdio. A partir dos 40, o ar livre ganha presença. Isso é visível em "O Delator" e "O Céu Mandou Alguém", de 1935 e 1948, respectivamente.

Digamos que todo o cinema dos anos 30 se adaptava ao sonoro e era feito quase todo em estúdio. O aspecto artificial, hoje claro, não era percebido pelo público.

À parte isso, temos aí dois exemplos notáveis da poesia desse autor. O documentário mostra como Ford reduzia uma pilha de diálogos a um simples e eloquente gesto. Cada vez mais, seus velhos filmes têm muito a ensinar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de junho de 2010)

HERÓI SOLITÁRIO CONTRASTA COM BUROCRATAS EM "OS ELEITOS"
INÁCIO ARAUJO


Não chega a espantar que "Os Eleitos" não tenha sido um grande sucesso de público. Afinal, aqui se poderia esperar a revelação dos heróis de uma nova era, os astronautas, mas não é bem o que acontece.

Ao adaptar o romance de Tom Wolfe, Philip Kaufman organiza seu filme numa estrutura que, como ressalta o crítico Danny Peary (citado no "All Movie Guide"), remete ao John Ford de "O Homem que Matou o Facínora".

Lá, James Stewart fica com as glórias por matar um bandido que, na verdade, foi John Wayne quem matou. Stewart tinha, no entanto, "the right stuff". Como os astronautas pioneiros daqui.
Para Kaufman, porém, o único herói de fato, na tradição, é o solitário piloto Chuck Yeager. Mas o tempo dos heróis acabou. A nova era pertence aos heróis robóticos, burocratas, pouco poéticos, mas certos para o papel a desempenhar.


(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de junho de 2010)

Friday, May 14, 2010

BOGART VIVE CRIMINOSO EM BUSCA DO IMPOSSÍVEL
INÁCIO ARAUJO


Humphrey Bogart ganhou seu primeiro papel principal no filme "O Último Refúgio" porque Paul Muni e George Raft não toparam ser Roy "Mad Dog" Earle.

Feliz acaso, que beneficiou Boggie, o cinema em geral, o filme policial em particular e, mais ainda, o longa-metragem de Raoul Walsh. Porque esse é, no limite, um filme de amor, e Bogart conhece as minúcias do amor como ninguém.

Durante todo o tempo, ele tem a seu lado uma renegada como Ida Lupino, fascinante como sempre.

Mas é pela garota de uma família empobrecida pela Depressão dos anos 1930 que "Mad Dog" acredita se apaixonar. Ou de fato a ama? Pois a família da menina o faz lembrar da sua, talvez. O fato é que Roy Earle não nasceu já criminoso e mau.

Ao mesmo tempo, lá está a outra mulher, sempre ao seu lado: uma igual. Uma mulher possível. Sim, mas o que certos criminosos buscam é mesmo o impossível. Esta, em resumo, é a saga de Roy Earle.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de maio de 2010)

Monday, May 10, 2010

"KILLER" COLOCA MATADOR NA ROTA DA TRAGÉDIA
INÁCIO ARAUJO

"The Killer" é o filme mais cerebral de John Woo até hoje. Não só porque a maior parte dos tiros fatais é desferida na cabeça dos inimigos. Mas também no sentido em que esta é a trama mais complexa desenvolvida até aqui pelo cineasta de Hong Kong.

Por uma vez, ele recua de seu habitual gosto coreográfico em favor de uma intriga mais interiorizada, embora sem renunciar aos balés de violência que caracterizam seu estilo.

A história trata de um matador, Jeff (Chow Yun Fat), que, durante um tiroteio, cega por acidente a cantora Jenny. Culpado e apaixonado, Jeff aproxima-se dela.

Erro fatal para um matador. A moça torna-se a isca de que o investigador Lee (Danny Lee) precisa para chegar a Jeff. Lee é policial cujo método de prender criminosos supõe um conhecimento íntimo do inimigo, que o faça capaz de, por exemplo, adivinhar seus movimentos.

Daí por diante, o que se verá surgir é uma complexa trama de solidariedades que se armam e desarmam. Assim, Jeff topa fazer um último trabalho apenas para pagar a operação que restituirá a visão de Jenny.

Com Lee, seu entendimento será mais doloroso. Entre os dois homens obstinados com a idéia de cumprir o dever que se atribuem surge uma amizade ambígua: eles passam todo o tempo se admirando e se enfrentando.

Ao longo da trama -que vai engrossando cada vez mais-, ambos percebem que o mundo se divide entre a ética e a ausência de ética. E que, mesmo estando em campos opostos, pode-se partilhar certos princípios.

Essa constatação é como um novo ponto de partida. Na verdade, o filme corria o risco de se tornar um imenso contra-senso. Jeff é um matador profissional. Que relação existe entre a mais sórdida das profissões e a ética? Nenhuma, em princípio.

Mas, em "The Killer" - como em outros filmes de Woo -, os personagens só encontram sua identidade fora de si mesmos. Um homem só passa a ser sujeito de seus atos a partir do momento em que um fator externo leva à descoberta da subjetividade.

No caso de Jeff, esse fator é Jenny: a mulher surge em sua vida como hipótese de redenção de todos os males que o vitimaram e que ele transformou em agressividade. Jenny é a chance que ele vislumbra de assumir o próprio destino. Mas é essa chance mesmo que levará Jeff à tragédia de viver o próprio presente com olhos no futuro e, ao mesmo tempo, tentar se desembaraçar de um passado que se nega a ser apagado facilmente.

A maquinação notável com que Woo articula termos como amor, violência, amizade, traição, transitando da mais completa sordidez à poesia mais sublime, faz de "The Killer" um acontecimento invulgar. É um grande filme popular.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de maio de 1995)

WOO TRANSFIGURA VIOLÊNCIA QUATRO VEZES
INÁCIO ARAUJO

O mercado brasileiro de vídeo é do tipo tudo ou nada. No caso do chinês John Woo estamos na fase do tudo. Boa parte dos filmes de sua fase chinesa (anterior a "O Alvo", de 93, em que dirigiu Van Damme) já está disponível.

É melhor ir com calma, sob risco de enjoar do trabalho deste diretor de primeira linha. Em todo caso, não há como evitar "Fervura Máxima" (1992), um dos melhores filmes do diretor chinês.

A história não é tão diferente assim das outras. De um lado existe um policial intrépido (Chun Yun Fat, ator constante do diretor), disposto a desmantelar uma gangue. De outro, um policial 'infiltrado. Mas, quem é ele? Qual o verdadeiro inimigo? E, como decorrência, quem sou eu?

Essa eterna dúvida sobre a natureza das coisas, que o cineasta explora com frequência, está presente de maneira ostensiva em "Fervura Máxima". E com o máximo de talento, também.

A violência hiperbólica, tão exagerada que até leva o espectador a esquecer da violência, a articulação dos movimentos (ora rápidos, ora em câmera lenta), os excessos que levam a ver o filme como uma espécie de musical sem música -como pura coreografia- estão presentes em tempo integral. Convivem com uma trama intrincada, onde o cineasta contrabandeia elementos personalíssimos para o filme de gênero.

"Alvo Duplo 2" (1987) desenvolve os mesmos elementos, com menos brilho. No centro, está um ex-gângster que tenta levar vida honesta. Não é fácil. Os dois irmãos (um deles o mesmo Yun Fat, o outro, Leslie Cheung, já visto em "Adeus Minha Concubina", de Chen Kaige) que já estavam presentes em "Alvo Duplo" se empenham em combater a montanha de malfeitores circundantes.

No meio, a batelada habitual de mortes e algumas dores profundas (a filha do ex-gângster, embora confiada a um dos irmãos, morre). Apesar das virtudes evidentes, é um trabalho médio, que não concorre em interesse com os melhores filmes do diretor.

"The Killer" (1989) desenvolve ostensivamente um viés constante nos filmes de Woo, que é o catolicismo. Forma, com "Fervura Máxima", a dupla de seus melhores filmes pré-EUA. A história diz respeito a um matador (Yun-Fat) que, ao fazer seu último trabalho, cega, por acidente, a mulher por quem irá se apaixonar.

A maldição que se abate sobre ele (cujas transações com armas se passam numa igreja) de certo modo resume o olhar de Woo: o homem é aquele que tenta se limpar de uma maldição (pode-se chamar também de pecado) original. "The Killer" é brilhante.

Por fim, temos "A Jugular Blindada" (1979), um kung fu típico, bem anterior aos policiais que já se conheciam. O interesse vem, em boa parte, daí. Podemos compará-lo a centenas de kung fus que passaram nos cinema ou TV.

Woo está duzentos pontos acima da média. Evita o uso indiscriminado da zoom (a aproximação e distanciamento do personagem por meio da objetiva de foco variável), histórias idiotas de lutadores. A coreografia é ok e a construção dos personagens aproximam "A Jugular" mais dos velhos filmes japoneses de samurai do que do kung fu vulgar.

Apenas para dar um exemplo: a história começa com o casamento de um senhor. As pessoas comentam a beleza da noiva e observam que ela "deve ser de boa família".

A isso, o nobre replica que ela é uma prostituta que encontrou em um bordel. Logo depois, dezenas de espadachins inimigos invadem o local. O nobre se dá conta de que a própria noiva o havia traído. Comenta: "Eu te dei meu amor, como você fez isso?" A moça não se aperta: "É que ele me pagou o dobro." Comentário final do vilão: "Vê? As prostitutas são todas iguais".

Esse é o começo, chave de entrada numa intriga intrincada, à moda de Woo, que leva o espectador a fazer uma boa idéia do que seja o bom kung fu e confirma a suspeita de que o gênero é bem mais rico do que faz supor a produção marreta que normalmente chega até nós.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 9 de agosto de 1995)

WOO ACERTA NO "ALVO"
INÁCIO ARAUJO

Cada época constrói sua própria violência. Primeiro, foi Robert Aldrich, no início dos anos 50, quem introduziu a violência extrema, em "Vera Cruz".

Depois, veio Sam Peckimpah, cujo "Os Implacáveis" foi um dos belos momentos da carreira de Steve McQueen.

Por fim, nos anos 90 existe quase um leilão: quem faz o espetáculo mais violento para melhor chamar o público?

Mas John Woo está em outro registro. Seu "O Alvo", primeiro momento de plena dignidade na carreira de Van Damme, faz da violência um uso sublimado.

Ela explode em sua plenitude, mas é absorvida pelo caráter coreográfico. Ao mesmo tempo, é esse aspecto que libera o olhar para observar a sordidez que se desenvolve ao redor da violência. É um cineasta original, num filme muito forte.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de junho de 1996)

CINEMA POPULAR GANHA NOVA CHANCE
INÁCIO ARAUJO

Como o mundo não é perfeito, a passagem de John Woo de Hong Kong para Hollywood se fez acompanhar de fantasmas que, desde os anos 20, atormentam os cineastas que migram para os EUA: são chamados por causa do que fazem em seus países de origem, mas nos EUA são impedidos de fazer o que faziam.

É difícil dizer o que há de definitivamente bom ou mau nesse sistema. Impedido de produzir em plena liberdade, John Woo conseguiu, em "A Última Ameaça", realizar quase um "revival" daquelas fabulosas aventuras clássicas americanas: era límpido e dotado de um talento que, hoje, os realizadores norte-americanos relutam em mostrar.

Seu trabalho mais recente, "A Outra Face", representou um retorno à plena liberdade. É um filme muito parecido, de certo modo, com os policiais que realizava em Hong Kong, e ali o enfrentamento entre dois homens (John Travolta e Nicolas Cage) consiste em uma tortuosa viagem interior -de ambas as partes- e no reconhecimento da profunda identidade entre os dois inimigos.

A diferença é que dessa vez Woo desenvolveu o tema usando, a seu favor, toda a tecnologia hollywoodiana, o que não é nada pouco. O resto corre por conta de seu talento, de uma imaginação sem rédeas.

É magnífico, sem dúvida, embora possa parecer muito próximo, por vezes, dos policiais que fazia em Hong Kong, e que o revelaram como cineasta de interesse mundial.Mesmo em "O Alvo", seu primeiro filme norte-americano, Woo tinha como desenvolver seu senso coreográfico raro: as lutas de Van Damme, ali, são possivelmente as cenas que mais lembram os grandes musicais da Metro dos últimos anos, pelo colorido, pela intensidade, pela graça.

Primeiro time

Mesmo levando em conta os percalços que um realizador estrangeiro encontra nos EUA -incluída a adaptação a outro país-, Woo hoje é um cineasta que se distingue e pode ser incorporado ao primeiro time da América.

Ninguém representa hoje, mais do que ele, esse anacronismo que é o cinema popular.Isso se deve, em parte, de o cinema de Hong Kong ser eminentemente popular (lá a média de frequência per capita de espectadores aos cinemas é das mais altas do mundo), o que é um tanto diferente do cinema de massas que, há duas décadas, domina Hollywood.

Os resistentes da América (Coppola, Scorsese, De Palma e alguns mais) estão cada vez mais acossados. John Woo representa um sopro novo de criatividade no cinema norte-americano. Espera-se que o cinema dos EUA saiba aproveitar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de setembro de 1997)

JOHN WOO REENCONTRA O ESPÍRITO DE AVENTURA
INÁCIO ARAUJO

Foi preciso importar um diretor de Hong Kong para que o cinema americano voltasse a ter filmes de aventura com espírito de aventura.

Essa é a maior contribuição de "A Última Ameaça": basta vê-lo para notar a precariedade de fórmulas tipo "Máquina Mortífera".

A intriga é simpaticamente absurda: Travolta faz um major aviador passado para trás nas promoções e disposto a roubar duas ogivas nucleares para efeito de chantagem. Quem o enfrenta é um ex-amigo, o tenente Hale (Slater).

O filme é orientado por um sentimento nostálgico: a vontade de reatar com a tradição clássica do filme de aventura americano.

Isso leva John Woo a abdicar em parte da originalidade que tem marcado seus trabalhos: nada das grandes surpresas, das coreografias alucinantes de outros filmes. Mas nessa súbita conversão ao papel de aprendiz também há ganhos.

Desde que os efeitos especiais se tornaram a real estrela dos filmes, somos submetidos a uma inflação de explosões acompanhadas de personagens apenas esboçados pelos roteiristas.
"A Última Ameaça" explora os efeitos melhor do que 99% dos filmes americanos atuais.

Uma explosão, uma queda de avião, aqui, não são apenas efeitos plásticos, mas um verdadeiro drama visual, que nos impressiona e, ao mesmo tempo, nos toca. Não são introduzidos gratuitamente, mas como decorrência necessária da ação.

Ao mesmo tempo, o filme trabalha bem com personagens arquetípicos, captados em elementos básicos (frustração, valentia, fraqueza etc.). Os atores, em especial Travolta, ajudam a criar a identificação entre protagonistas e platéia.

O risco disso tudo consiste em o filme poder ser visto, por parte do público, como uma bela velharia.

Com efeito, os filmes do tipo explode-e-corre são banais, mas modernos. Respondem a um mundo dominado pela tecnologia. Aqui, a tecnologia é muito bem usada, mas como elemento subsidiário.

"A Última Ameaça" parece representar um momento intermediário entre as virtudes que Woo já demonstrou (a inventividade na ação, o talento no uso da câmera) e algo que está por vir: a capacidade de incomporar a tecnologia como motivo do filme, sem cair na banalidade das fórmulas. É o que fazem De Palma, Spielberg, Cameron.

Por ora, o espectador pode ir ao cinema certo de que verá um espetáculo de fato espetacular.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 5 de abril de 1996)

Sunday, May 02, 2010

FILME RENOVA TEMAS DE WOODY ALLEN
INÁCIO ARAUJO


Os fiéis de Woody Allen já conhecem Boris Yellnikoff (Larry David) de algum lugar. Afinal, ele costumava frequentar seus filmes dos anos 70. É um desses intelectuais cheios de si, sempre em busca da verdade absoluta e sempre prontos a se apaixonar pela primeira adolescente que passe à sua porta.

A diferença é, talvez, que Boris envelheceu. À pretensão acrescentaram-se algumas manias. Talvez alguns fracassos.

Ele é o autoproclamado gênio, quase indicado para o Nobel, que ganha a vida dando aulas de xadrez a crianças e se diverte proclamando o fracasso da espécie humana. Será um gênio ou um cretino?

Em todo caso, Boris é o tipo perfeito para encarnar aquilo que, desde sempre, melhor funciona em Woody Allen: uma mistura de comédia e drama, em que a gravidade das coisas apenas se insinua sob o humor.

E "Tudo Pode Dar Certo" é, com as devidas distâncias, uma comédia dramática na linha de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" ou "Manhattan".

Não é mais a psicanálise que dá o tom: o tempo passou o bastante para que Boris tenha a ilusão de se curar. Aliás, ele não acha que tenha nada do que se curar: suas certezas são inarredáveis. A primeira delas começa a ruir logo nos primeiros minutos, quando surge à sua porta Melody, uma loirinha do Mississipi. O misantropo não consegue vencer seu impulso humanista e não só acolhe a moça em sua casa como, pouco depois, está vivendo com ela.

Se esse encontro absurdo pode acontecer, tudo mais pode acontecer. Por exemplo, a vinda, do Sul, da mãe de Melody, fanática religiosa que, em Nova York, se transformará.

De certo modo, essas coisas podem acontecer porque Allen aqui reencontra, na maturidade, tipos de Nova York aos quais já nos apresentou. Se ele retoma seu gosto pelas caricaturas, convém não esquecer que Woody Allen realiza aqui um conto de Natal, isto é, reencontra aquele gênero de filmes pródigos em milagres, em que se cantava a maravilha da vida.

Aqui não há milagres. Existe uma intervenção copiosa do acaso. Com isso, Allen fica, outra vez, como nos seus melhores trabalhos: com um pé no passado e outro no presente, um na tradição e outro no prazer de constatar a permanência de certos sentimentos - desde que renovados, é claro. É isso que almeja e é a isso que, afinal, chega: um filme otimista a partir de um pessimista. Um filme em que a vida parece pródiga em milagres, mas eles não vêm de Deus. Um filme laico neste tempo de religiosidade.

Não faltará, é verdade, quem reclame que, por trás de Larry David, pode-se ver Allen, o ator.

É verdade. Isso acontece com frequência, quando Allen dirige sem ser ator: como se gostasse de se ver em um dos personagens. É um problema menor.

Na verdade, um não problema neste que, a mim, parece o trabalho mais estimulante do autor ao menos nesta década.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de abril de 2010)

Saturday, May 01, 2010

CIMINO RETRATA O INFERNO DA GUERRA
INÁCIO ARAUJO


Não raro, o destino de um filme independe de suas qualidades estéticas e, ao contrário, depende muito do que representa no momento.

Em 1978, "O Franco Atirador" levou o Oscar não só por virtudes cinematográficas que são claras, mas por marcar a reconciliação da América consigo mesma após a Guerra do Vietnã.

Na ocasião, foi passado para trás "Amargo Regresso", de Hal Ashby, que tratava a participação americana no conflito em termos mais críticos.

Michael Cimino é um diretor bem mais forte que Ashby, mas isso não define prêmios.
Sobretudo porque o essencial de "O Franco Atirador" era relatar o inferno da experiência na guerra e o retorno como uma espécie de reencontro, apesar de tudo, com uma situação paradisíaca.

Até hoje se criticam no filme inexatidões como a roleta russa que o vietcongue força os rapazes a praticar.

O fato de não ter acontecido não muda nada: era o inferno que Cimino queria e conseguiu mostrar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 9 de abril de 2010)

Thursday, January 14, 2010

FILMES DE ERIC ROHMER IRÃO SOBREVIVER POR MUITO TEMPO
INÁCIO ARAUJO



Dos cinco "jovens turcos" da revista "Cahiers du Cinéma" que revolucionaram o entendimento do cinema nos anos 50 do século passado, Eric Rohmer era o mais velho. Foi também o último a se tornar conhecido -pois não seria justo dizer que foi o último "a fazer sucesso".

Sua personalidade é mais ou menos o oposto daquilo que, cada vez mais, pede a indústria cinematográfica: presença em festivais, fotos nas revistas, declarações para a imprensa. Presença mundana e profissional, enfim. Raramente dava entrevistas. Não se deixava fotografar para evitar que, tornando-se conhecido, já não pudesse circular livremente por Paris. Recusava-se a frequentar festivais de cinema.

Sua obra é, de certa forma, um espelho fiel da personalidade. Rohmer nunca fez concessões à indústria, evidentemente. Não fez concessões nem a seus amigos da "Cahiers": quando se tornou redator-chefe, continuou a dar mais atenção aos clássicos do que aos modernos (inclusive aos filmes da nouvelle vague), de tal modo que precisou ser, a horas tantas, substituído por Jacques Rivette (operação traumática, que resultou em anos de afastamento da revista dele e dos redatores mais próximos a ele). Esse momento marcou também o fim da fase "amarela" da revista francesa.

Sua obra compõe-se, basicamente, de três séries previamente planejadas: "Contos Morais", "Comédias e Provérbios" e "Contos das Quatro Estações". A eles acrescentou trabalhos de maior produção, para os quais era em geral contratado, como "A Marquesa d'O", "Perceval le Galois", nos anos 70, ou, mais recentemente, "A Inglesa e o Duque". São os "pequenos filmes", no entanto, que marcam seu modo de produzir cinema: filmagem com pouquíssimos técnicos (em geral não mais de três), atores jovens colaborando em atividades desde cenografia e escolha de figurinos até empurrar o carrinho de "travelling" quando isso se impunha. Com isso, Rohmer conseguia a independência total, isto é, não dependia de concursos ou subvenções estatais para fazer seus filmes.

O espectador "normal" (não afeito ao acompanhamento do cinema em geral) viu Rohmer, por muito tempo, como um temperamento literário perdido no cinema, já que seus filmes eram excessivamente falados. Ele desdenhava desse tipo de comentário: entendia que suas histórias só tinham sentido no cinema.

Os cinéfilos, a parte mais paciente deles, em todo caso, percebiam que seus filmes eram um estranho e atraente tipo de monólito. Não se preocupavam nunca em nos seduzir. Nem em nos encantar. Dizia que, se poesia havia num filme, ela devia vir das coisas filmadas, nunca da maneira de filmar. Seu enquadramento nunca procura se notabilizar diante de uma paisagem ou "fazer bonito".

Suas histórias recusavam qualquer tipo de simbolismo ou "profundidade". Entendia que o cinema não é feito para "pensar" nem para "dizer", e sim para mostrar. Esse seu fundamento, naturalmente, redunda num realismo radical e em histórias quase banais, vividas por pessoas comuns, em que escolhas pessoais, amores, acasos entravam no jogo. Nunca a psicologia.

Fala-se muito, de fato (como os franceses, mestres da verbalização). Mas, com um pouco de persistência, o espectador perceberá um dos pontos-chave da obra de Rohmer: uma sutil distinção entre aquilo que os personagens entendem que seja a realidade e os fatos propriamente ditos.

O reconhecimento veio aos poucos para esse autor (que detestava ser chamado de "realizador"). Fora dos círculos especializados, partiu, curiosamente, dos EUA, onde seus filmes tinham larga audiência e onde sua descrição da vida dos franceses era muito mais apreciada do que na própria França.

Ao contrário de cineastas que por vezes encantam no momento e logo são esquecidos, a obra que deixa, vasta, cultíssima, enigmática, certamente sobreviverá a ele por muito tempo e será difícil não reconhecê-la como um dos grandes momentos do cinema francês na segunda metade do século 20 e neste início de 21.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 14 de janeiro de 2010)

"NO MUNDO DE 2020": LIVRE DA DITADURA "BLOCKBUSTER"
INÁCIO ARAUJO

Discretamente , quase disfarçado, o canal TCM - Hollywood Classics, vulgo Turner Classics, entrou no sistema TVA, embora ainda não seja encontrável em sua revista (o que não é grande vantagem: não se encontra mais nada nessa revista, com a nova diagramação).

A programação é farta, embora tenha a limitação de só trazer filmes hollywoodianos, enquanto seu concorrente direto, o Telecine Classic, pode viajar a outros continentes em busca de material (embora o faça bem menos do que seria esperável, diga-se).

O fato é que a Turner detém os direitos de uma pá de filmes importantes. Um deles, que passa hoje, é "No Mundo de 2020" (23h30). O filme desenvolve uma séria de fantasmas que se poderia ter acerca do futuro por volta de 1970: um mundo extremamente populoso, a separação radical entre uma classe social abastada e reduzida e outra, enorme e pobre, por exemplo.

O centro aqui são as fontes de alimentação, que se reduzem, ao menos para a população pobre, e, se bem me lembro, a uma bolacha esverdeada. Sinal de que também a natureza recolheu-se ou foi dizimada.

"No Mundo de 2020" é, no entanto, um policial disfarçado de ficção científica, que Richard Fleischer leva com sua proverbial competência. Logo no início, um executivo da fábrica de alimentos aparece morto. Cabe a Charlton Heston, com ajuda de Edward G. Robinson, investigar o que houve com o homem.

A investigação levará ao terrível segredo que envolve essa Nova York do futuro, sobre o qual convém silenciar aqui. Fiquemos apenas com o que é constatável: a Hollywood de 1973, quando o filme foi feito, ainda envolta pela Guerra do Vietnã e livre da ditadura do "blockbuster", sabe ser, nesse momento, bastante crítica e conseqüente em sua abordagem política.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de outubro de 2005)