Canto do Inácio

Tuesday, July 13, 2010

OZON REPRODUZ VIA COMO EXTENSÃO DO SONHO
INÁCIO ARAUJO


O primeiro espanto chega cedo, ainda nos créditos: "Angel" é a adaptação de um romance de Elizabeth Taylor. Não a atriz, mas uma escritora inglesa (1912-1975). Durante todo o filme, no entanto, é da atriz que nos lembraremos, pois é ao cinema dos anos 40/50, às produções da Metro e ao technicolor que somos remetidos. Tudo, em particular a música e a direção de arte, carregam esse esforço explícito de fazer "à maneira de".

A opção maneirista faz sentido, já que se trata, num primeiro nível, de relatar a vida de Angel Deverell, jovem pobre da Inglaterra que vira da noite para o dia um fenômeno literário tipo Paulo Coelho nos anos que antecedem a Primeira Guerra.

Angel é um caráter forte: diz o que pensa, vai atrás do que quer, nunca recua. O sucesso precoce premiará sua imaginação fértil e romântica, mas em que a intuição supera o trabalho intelectual. Suas qualidades a levarão a possuir Paradise, a propriedade que ambicionara na infância, e a casar com Ermé, o homem que deseja.

Já dá para notar a proximidade entre essa história e certas antigas produções hollywoodianas. Daqui por diante, talvez seja o caso de acentuar as diferenças, o que faz de "Angel" um filme, afinal, contemporâneo. Angel Deverell tem o lado autista acentuado. Como percebe Ermé, ela faz sucesso porque se relaciona consigo mesma, não com seus leitores. O tempo mostrará que Angel só vê e aceita o mundo como extensão de seus desejos. Esse jeito Scarlett O'Hara levará Ozon a acentuar o lado melodrama romântico de "Angel" e propiciará uma descrição original da vida inglesa no início do século, em contraste com a reconstituição de época convencional dos filmes de costumes britânicos.

O interesse do filme, porém, não vem daí, mas do tipo de vida dupla que leva Angel Deverell. Como a imaginação determina seu sucesso e, em grande medida, seu destino, há aí uma incidência do mundo imaginário sobre o real. O "mundo de sonhos" que nos prometiam os filmes de Hollywood (por duas horas) é aquele em que Angel viverá em tempo integral.

Está certo que, mais tarde, ela poderá perguntar se viveu o real ou o imaginário. De certa forma é o que o filme diz: talvez a vida não seja mais que um sonho. Pode ser que a idéia reproduza mais o conformismo hollywoodiano que as questões com que um Borges duplicava a percepção do mundo, mas é levada com convicção -e rende duas horas de entretenimento.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 07 de março de 2008)

FRANÇOIS OZON EXPLORA PRIMEIRO TIME DE ESTRELAS
INÁCIO ARAUJO


"Oito Mulheres " se propõe, inicialmente, como "whodunit" (quem é o culpado?). Um homem é assassinado em sua própria casa, numa noite de neve. Ali estão oito mulheres, da sogra às duas filhas, passando por mulher, cunhada, criadas. Os fios telefônicos são cortados; não existe possibilidade de deixar a casa e informar o fato à polícia.

Resta às mulheres se improvisar em detetives e levar adiante uma trama tipo Agatha Christie, em que conversar equivale a investigar, e investigar, a buscar as causas secretas que poderiam levar cada uma delas àquele gesto.

Trata-se, em primeiro lugar, de um filme de atrizes: de Danielle Darrieux a Virginie Ledoyen, passando por Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Fanny Ardant, temos aí três ou quatro gerações do primeiro time de estrelas francesas.

Em um segundo nível, trata-se de um filme explicitamente teatral, não só por se desenrolar basicamente em um cenário (a sala de uma mansão), como porque cada uma das mulheres representa um papel. Ninguém se espante, portanto, de se ver diante de interpretações também teatrais.

À medida que se desenvolve, o "whodunit" ganha novos contornos. Existe um quê musical (cada uma delas interpreta uma canção, o que lembra o artifício usado antes por Alain Resnais em "Aquela Velha Canção", de 1997). A comédia também se insinua.

Por fim, o espectador se dá conta de que o caráter detetivesco da trama é, antes de mais nada, um recurso pelo qual as personagens abandonarão, pouco a pouco, os papéis sociais que representam para se mostrar tal qual são.

O assassinato (e a descoberta da assassina) se torna o acessório. Cada uma das oito mulheres carrega uma culpa (ou várias) e um segredo, assim como nós. É como se o filme nos chamasse a refletir sobre a vida como indispensável exercício de tolerância em face dos defeitos do ser humano.

Ou, em outras palavras, a imperfeição é nossa condição. Se retiramos a capa de sociabilidade que existe em um homem, descobrimos sem grande dificuldade que se trata de um monstro.

Se retiramos a capa de todos eles (ou de todas elas, no caso) -que é a proposta do filme-, talvez estejamos a caminho de encontrar uma nova sociabilidade e uma nova compreensão.

O raciocínio parece incontestável e, sobretudo, aplicável a um tempo em que a humanidade já esgotou mais ou menos todo o repertório de iconoclastia disponível. Os pobres já desmascararam os ricos e vice-versa. Os filhos já desnudaram os pais e vice-versa.

Resta que existe algo de estranho nessa operação. Se todos nos desvendamos mutuamente, tudo também se torna inoperante.

Cria-se uma espécie de democracia do defeito que não reconhece hierarquia e de certa forma aplasta os problemas humanos, limitando-os à sua dimensão psicológica. Talvez se originem daí, e do caráter excessivamente demonstrativo da trama, os não raros momentos de monotonia que permeiam o novo longa de Ozon.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 12 de setembro de 2002)

FRANÇOIS OZON DESMONTA EXPECTATIVAS LEVANDO A INCERTEZAS
INÁCIO ARAUJO


Desaparecer é uma coisa, morrer é outra. O segundo caso nos leva ao território da certeza, o primeiro só traz dúvidas.

É bem nesse âmbito que vive Charlotte Rampling (Marie) em "Sob a Areia". Logo no início do filme, seu marido desaparece tomando um banho de mar. Ou melhor: desaparece. Se se afogou tomando banho de mar, se sumiu como as pessoas que saem para comprar cigarro e nunca mais voltam, se se suicidou no mar ou em qualquer outro lugar, isso é coisa que não se pode saber.

Mais: eles formam um velho casal feliz. Não apaixonado à maneira juvenil, mas com um amor que se pode chamar de sólido -realizado, mas não terminado.

Quando as pessoas morrem, resta aos que sobrevivem um longo trabalho de luto: uma adaptação à nova realidade, o acerto de contas com as culpas etc..

Como Jean (Bruno Cremer) não morreu, mas está desaparecido, a situação de Marie é mais angustiante, e é dessa angústia que o filme de François Ozon trata.

Ou antes: estamos diante de uma situação em que o fio que separa o real do imaginário se torna tremendamente tênue. Marie precisa continuar a viver. Dá aulas de inglês, encontra-se com os amigos. Mas Jean nunca deixa de estar com ela. Talvez não se deva dizer que ele é um fantasma assombrando sua vida. Como o amor entre os dois, suas aparições são suaves, nada espetaculosas, nem assustadoras. Jean é uma imagem, uma presença.

Podemos pensar em filmes em que mortos aparecem (de "Ghost" a "Os Outros") como fantásticos, no sentido em que a imaginação se impõe à realidade, ou antes, em que a realidade deriva de nossa capacidade de imaginação. O que François Ozon parece fazer aqui é cutucar essa distinção. Em "Sob a Areia", o espectador permanece em estado de alerta, sem saber ao certo com o que está lidando.

Esse é o encanto do filme. Embora saibamos que a presença de Jean resulta da imaginação de Marie, sabemos que ela não é uma psicótica.

O marido não é uma visão, não surge do além. As reações de Marie, a maneira como fala do marido são, afinal, compreensíveis. Os amigos podem ficar um tanto estarrecidos com o que ela diz, mas não alarmados.

Desde "Sitcom", Ozon tem se pautado por um cinema que, se ainda não chega a fazer dele um dos grandes cineastas franceses em atividade, em todo o caso tem o dom de desmontar expectativas, de não se acomodar ao sentido dado das coisas.

Aqui, Ozon conduz o espectador a uma espécie de flutuação, digamos assim, na medida em que todo o tempo destrói nossa expectativa (que tem a ver com sentidos dados, sejam eles o luto, a loucura, o fantástico ou qualquer outro) e nos leva a um estado de incerteza, em que pouco a pouco nos enredamos, ao lado de Charlotte Rampling, numa aventura de que desconhecemos não só o final, mas em que os dados de que dispomos não permitem alicerçar nenhuma certeza quanto ao chão por onde se anda.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 21 de dezembro de 2001)

CLICHÊ POLICIAL RESSOA NA BOA ATMOSFERA DE FRANÇOIS OZON
INÁCIO ARAUJO

Sarah Morton é uma veterana, bem-sucedida e mal-humorada escritora inglesa de livros de mistério. À beira de uma crise criativa e de um colapso nervoso, é remetida pelo editor à casa deste último, no interior da França.

E tudo começa muito bem para Sarah: os novos ares, o silêncio e a paisagem parece que vão trazer-lhe de novo as idéias. Isso até que aparece Julie, filha do editor. Com Julie vêm o barulho, a falta de educação e a inquietude.

A inquietude é o mais importante. Julie representa, no estado mais agressivo que Sarah pode conceber, a juventude, a beleza e o desregramento dos sentidos. Para uma mulher madura, isso é inquietante: a cada noite, Julie aparece com um companheiro.

Sarah ressente-se disso, não sabemos exatamente por quê: ou porque é reprimida mesmo, ou porque seu tempo de ser desejada já passou -mas não o de desejar. O certo é que François Ozon foi muito feliz ao escalar duas atrizes de características opostas para os papéis centrais. Charlotte Rampling, que faz Sarah, não consegue deixar de ser distinta. Sabe se exprimir com economia de meios. Ludivine Sagnier, ao contrário, é aquilo que o crítico Rubem Biáfora chamava de "beleza vulgar".

Não é uma má atriz. Ela é dotada de um natural espalhafato, cujo signo mais evidente são os seios volumosos, que Ozon faz questão de destacar. Estabelecido o contraste, segue-se a distância, o confronto entre as duas, cujo "leit motif" é o livro que Sarah escreve. E Ozon tem o mérito inquestionável de criar uma boa atmosfera.

Como é, no entanto, autora de livros policiais, é justo que uma intriga dessa natureza venha bater à sua porta. E que use sua experiência num crime que acontece bem perto de si. Nesse ponto, porém, é que as coisas começam a andar menos bem: o clichê é estridente demais para não ter ressonância sobre o restante da trama.

É verdade que Ozon tenta consertar as coisas inserindo, no final, uma vinheta "inteligente" sobre o caráter intercambiável da realidade e da ficção. É a "surpresa final" e não seria justo falar sobre ela. Digamos apenas que a idéia que o filme procura transmitir, a da intimidade entre criador e criação, acaba não sendo resgatada.

E François Ozon, que parece estar construindo uma carreira de altos ("Gotas d'Água em Pedras Escaldantes") e baixos ("Oito Mulheres"), continua na mesma tocada. Aqui o alto e o baixo estão no mesmo filme.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de janeiro de 2004)

Thursday, July 01, 2010

BELEZA TOMA CONTA DA SELVA EM "MOGAMBO"
INÁCIO ARAUJO

"Mogambo" leva ao Quênia, na África, duas belas mulheres: Ava Gardner e Grace Kelly. Ambas têm a idéia de se apaixonar por Clark Gable, caçador especializado em fornecer animais para zoológicos de todo o mundo.

Ambas se apaixonam por Clark. E Clark, que não é bobo nem cego, se interessa por ambas. Escolher, porém, não será fácil. Num primeiro momento, ele não está nada a fim a levar em consideração o fato de Grace Kelly ser casada. Aliás, ela já chegou ali disposta a separar-se do marido.

Se Linda é a mulher culta e fina, Ava Gardner compõe o tipo oposto: ex-corista, com um passado duvidoso nas costas e com um quê vulgar. Dá para passar por cima desses detalhes diante de tamanha beleza. Mas Grace também é belíssima. Até aí, empate.

O que John Ford colocará ao longo do filme é a descoberta de si mesmo por um homem. "Quem eu sou?" é a questão que o homem se proporá, saiba ou não que a está colocando.

O problema será mais sutil do que em outras vezes que foi colocada pelo diretor. Não existe uma questão radical de caráter, que permite à mulher do povo, desprezada pela leis sociais, revelar seu valor às custas das demonstrações de fraqueza da gente fina.

Era o que acontecia, por exemplo, em "No Tempo das Diligências" (1939). Esse xadrez desenvolvido ao longo de caçadas confere ao filme uma sutileza rara, que talvez o tenha levado a ser subestimado. Descobrir quem é a mulher de sua vida equivale a descobrir, para Clark Gable, o que é sua vida: a beleza de "Mogambo" passa, em grande parte, por aí.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 11 de maio de 1994)

FORD VESTE A FARDA EM "FORT APACHE"

INÁCIO ARAUJO

John Ford já estava no Oeste nos tempos do mudo. Fez o notável "Cavalo de Aço" (1924). Nos anos 30, dirigiu "No Tempo das Diligências". Nos 50, a obra-prima "Rastros de Ódio".

Ele podia dar explicações práticas para sua preferência por faroestes. Longe dos estúdios, também estava longe do controle dos produtores. E Ford não era propriamente dócil a produtores. Mas isso não chega a explicar seu trabalho.

"Fort Apache" (nos cinemas, "Sangue de Herói") é o filme que abre a trilogia sobre a Cavalaria baseada em livros de James Warner Beulah, realizada entre 1948 e 1952.

Ali, o coronel Thursday (Henry Fonda) chega para comandar um forte no Oeste. É um empedernido "wasp" (sigla que designa os brancos, anglo-saxões, protestantes – o que existe de nobreza nos EUA).

Para Thrusday, o Exército é um lugar onde homens gloriosos realizam feitos idem. Sob a solene etiqueta militar, ele despreza seus homens. São oficiais, como John Wayne, ou simples sargentos, com Victor McLaglen, mas sempre plebeus. Thrusday também ignora os índios, a quem vê como as alavancas de sua glória futura.

Essa incapacidade de olhar a realidade levará Thursday à própria desgraça (o filme é uma versão disfarçada do massacre de Little Big Horn, quando os índios derrotaram as forças do general Custer).

Ora, as desgraças de Thursday são proporcionais às experiências de sua filha. Ela, uma mulher do Oeste: vê o mundo como é, limpa-se de preconceitos e trata de se apaixonar pelo filho de um sargento.

É verdade que o coronel Thrusday honrará o cerimonial do Exército, seus rituais, sobretudo ao comparecer – contrafeito – ao baile dos suboficiais (um dos pontos altos do filme).

O essencial é que Ford reencontra aqui seu ambiente, seu Oeste, sua querida Cavalaria, e reafirma a idéia-chave de seus filmes: a de uma América construída por homens comuns, não por seres de exceção. "Fort Apache" é um belo Ford.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 19 de maio de 1994)

FORD ACENTUA CRÍTICA A BRANCOS
INÁCIO ARAUJO

"Terra Bruta" é visto com frequência, e um pouco injustamente, como um subproduto de "Rastros de Ódio", que hoje é considerado a obra-prima de John Ford.

Com todo o respeito pelos "Rastros", "Terra Bruta" é uma variação no mínimo interessantíssima do mesmo tema. James Stewart é o xerife; Richard Widmark, o oficial. Em dado momento, eles devem entrar em território comanche para resgatar prisioneiros brancos.

O confronto entre brancos e índios é isento aqui da paixão que caracterizava o personagem de John Wayne em "Rastros de Ódio". São, antes, dois profissionais que cumprem uma missão. Profissionais bem diferentes, a rigor: Widmark é um militar íntegro, enquanto Stewart é um corrompido.

Mas o olhar cínico que Stewart lança sobre as coisas — essa espécie de descompromisso com a ordem que caracteriza seus atos — é também o que lhe permitirá ver a realidade que terá diante de si com maior elasticidade.

À parte um diálogo de minutos e minutos entre os dois homens (um longo plano à beira de um rio), momento antológico do qual se perde muito na versão dublada, "Terra Bruta" é sintomático do último John Ford.

Em sua trajetória, mostra-se cada vez mais compreensivo em relação aos índios e mais irascível quanto aos brancos (cuja intolerância, aqui, é encarnada pelo oficial). Ao mesmo tempo, o papel da mulher é cada vez menos decorativo, adquire uma essencialidade que já prefacia sua última proeza: "Sete Mulheres", de 1966.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 15 de março de 1995)

FORD LUTA COM TECHNICOLOR
INÁCIO ARAUJO

A saga dos pioneiros da Nova Inglaterra, associada à luta pela independência dos Estados Unidos, é menos clara do que costumam ser os filmes americanos. O que se poderá comprovar neste "Ao Rufar dos Tambores".

A partição evidente entre bons e maus, mocinhos e bandidos, acaba se complicando. Existem ingleses, índios, franceses, voluntários da independência, colonos.

Os índios, que o faroeste consagrou - na era clássica - como vilões da história, costumam, nesta saga e ao contrário do faroeste - oscilar de um lado para outro, sempre na condição de objetos da história, nunca de sujeitos a quem se atribui uma função definida, além de estar ali estragando uma trama de brancos.

Daí que uma das características interessantes deste filme seja centrar fogo na história dos colonos, em particular do casal Henry Fonda/Claudette Colbert. É na linha de Ford: buscar o heroísmo do cotidiano, pôr em relevo o que há de incomum no homem comum.

Ainda assim, pode-se pensar em outros filmes de Ford mais animadores, nesse período: "No Tempo das Diligências", "A Mocidade de Lincoln", "As Vinhas da Ira", "Caminho Áspero" (todos feitos entre 39 e 41) são superiores por diferentes motivos.

O que eles têm em comum é o preto-e-branco, além de um cenário natural menos exuberante, menos invasivo. Mesmo sendo John Ford, esse cenário e as cores do technicolor - que usava pela primeira vez - interferem no conjunto, como uma espécie de ruído que se imiscui e se constitui numa ameaça permanente a rondar a essência do filme.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia9 de junho de 1995)

"TERRA BRUTA" OBSERVA DILACERAÇÃO AMERICANA
INÁCIO ARAUJO

"Terra Bruta" tem o encanto de juntar James Stewart e Richard Widmark. O primeiro, é um xerife bonaçhão. O segundo, um militar tenso. As diferenças entre as personalidades e natureza de suas ocupações aparecerão com clareza ao longo de uma história próxima à de "Rastros de Ódio" (1956), considerado a obra-prima de John Ford.

É verdade que em TV a melhor cena –um longo diálogo entre os dois homens, à beira de um rio– perderá muito de seu encanto: as pausas e subentendidos que norteiam essa conversa ficam sem a força de algo concebido no momento. O som de estúdio (independente do esforço dos dubladores) abafa algo que se constrói no instante.

A trama propriamente dita diz respeito à busca de brancos raptados pelos índios. E John Ford, que estava no seu melhor momento, tira todas as consequências desse conflito trágico. Pode-se sempre preferir "Rastros de Ódio" (imbatível no ramo), mas "Terra Bruta" continua um filme vivo como poucos, onde toda a força de Ford para trabalhar o mito americano volta-se para a observação de seu dilaceramento.

É um desses filmes de Ford em que a dureza (sobretudo do meio para o fim) triunfa sobre a leveza, sem que se perca nada do encanto.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 22 de março de 1994)

FORD ENSINA A FILMAR BIOGRAFIAS
INÁCIO ARAUJO


Nem só de faroestes se fez a vida de John Ford. Apesar das aparências, ele sabia se exercitar com a mesma desenvoltura em outros setores. Em alguns deles era imbatível (caso da saga irlandesa). No caso das biografias, seus filmes seriam capazes de ensinar muita gente, ainda hoje.
Estão nesta categoria "A Mocidade de Lincoln" (1939), "A Paixão de uma Vida" (1955) ou "Asas de Águia".

O caso de Frank "Spig" Wead é um pouco diferente. Aviador naval, acrobata, seu conflito central é entre a dedicação à pátria e à família. A renúncia à família, no mais, é tão ostensiva que sua mulher Minne (Maureen O'Hara), a horas tantas lhe dá um basta.

Nesse sentido, não faltam peripécias à trama: o retorno arrependido à família, o acidente (queda de uma escada) que o torna paralítico, a tentativa de, ainda assim, estar perto da tropa. Uma história através da qual Ford ensina que uma biografia não é uma sequência de fatos. Mas a ordenação de uns tantos fatos a partir de uma idéia. Algo que parece não ter sido assimilado pelo brasileiro "Lamarca", que está para entrar em cartaz.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 27 de abril de 1994)

FILMES MOSTRAM O POÉTICO CINEMA DE JOHN FORD
INÁCIO ARAUJO


Uma observação preciosa no documentário sobre John Ford que o TCM exibiu recentemente diz respeito à diferença de estilo entre seus filmes dos anos 1930 e 1940.

Nos anos 30, os filmes têm cara de estúdio. A partir dos 40, o ar livre ganha presença. Isso é visível em "O Delator" e "O Céu Mandou Alguém", de 1935 e 1948, respectivamente.

Digamos que todo o cinema dos anos 30 se adaptava ao sonoro e era feito quase todo em estúdio. O aspecto artificial, hoje claro, não era percebido pelo público.

À parte isso, temos aí dois exemplos notáveis da poesia desse autor. O documentário mostra como Ford reduzia uma pilha de diálogos a um simples e eloquente gesto. Cada vez mais, seus velhos filmes têm muito a ensinar.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de junho de 2010)

HERÓI SOLITÁRIO CONTRASTA COM BUROCRATAS EM "OS ELEITOS"
INÁCIO ARAUJO


Não chega a espantar que "Os Eleitos" não tenha sido um grande sucesso de público. Afinal, aqui se poderia esperar a revelação dos heróis de uma nova era, os astronautas, mas não é bem o que acontece.

Ao adaptar o romance de Tom Wolfe, Philip Kaufman organiza seu filme numa estrutura que, como ressalta o crítico Danny Peary (citado no "All Movie Guide"), remete ao John Ford de "O Homem que Matou o Facínora".

Lá, James Stewart fica com as glórias por matar um bandido que, na verdade, foi John Wayne quem matou. Stewart tinha, no entanto, "the right stuff". Como os astronautas pioneiros daqui.
Para Kaufman, porém, o único herói de fato, na tradição, é o solitário piloto Chuck Yeager. Mas o tempo dos heróis acabou. A nova era pertence aos heróis robóticos, burocratas, pouco poéticos, mas certos para o papel a desempenhar.


(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de junho de 2010)