Canto do Inácio

Tuesday, July 13, 2010

CLICHÊ POLICIAL RESSOA NA BOA ATMOSFERA DE FRANÇOIS OZON
INÁCIO ARAUJO

Sarah Morton é uma veterana, bem-sucedida e mal-humorada escritora inglesa de livros de mistério. À beira de uma crise criativa e de um colapso nervoso, é remetida pelo editor à casa deste último, no interior da França.

E tudo começa muito bem para Sarah: os novos ares, o silêncio e a paisagem parece que vão trazer-lhe de novo as idéias. Isso até que aparece Julie, filha do editor. Com Julie vêm o barulho, a falta de educação e a inquietude.

A inquietude é o mais importante. Julie representa, no estado mais agressivo que Sarah pode conceber, a juventude, a beleza e o desregramento dos sentidos. Para uma mulher madura, isso é inquietante: a cada noite, Julie aparece com um companheiro.

Sarah ressente-se disso, não sabemos exatamente por quê: ou porque é reprimida mesmo, ou porque seu tempo de ser desejada já passou -mas não o de desejar. O certo é que François Ozon foi muito feliz ao escalar duas atrizes de características opostas para os papéis centrais. Charlotte Rampling, que faz Sarah, não consegue deixar de ser distinta. Sabe se exprimir com economia de meios. Ludivine Sagnier, ao contrário, é aquilo que o crítico Rubem Biáfora chamava de "beleza vulgar".

Não é uma má atriz. Ela é dotada de um natural espalhafato, cujo signo mais evidente são os seios volumosos, que Ozon faz questão de destacar. Estabelecido o contraste, segue-se a distância, o confronto entre as duas, cujo "leit motif" é o livro que Sarah escreve. E Ozon tem o mérito inquestionável de criar uma boa atmosfera.

Como é, no entanto, autora de livros policiais, é justo que uma intriga dessa natureza venha bater à sua porta. E que use sua experiência num crime que acontece bem perto de si. Nesse ponto, porém, é que as coisas começam a andar menos bem: o clichê é estridente demais para não ter ressonância sobre o restante da trama.

É verdade que Ozon tenta consertar as coisas inserindo, no final, uma vinheta "inteligente" sobre o caráter intercambiável da realidade e da ficção. É a "surpresa final" e não seria justo falar sobre ela. Digamos apenas que a idéia que o filme procura transmitir, a da intimidade entre criador e criação, acaba não sendo resgatada.

E François Ozon, que parece estar construindo uma carreira de altos ("Gotas d'Água em Pedras Escaldantes") e baixos ("Oito Mulheres"), continua na mesma tocada. Aqui o alto e o baixo estão no mesmo filme.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de janeiro de 2004)

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