Canto do Inácio

Wednesday, July 23, 2008

BATMAN - O CAVALEIRO DAS TREVAS
INÁCIO ARAUJO


Primeiro, peço desculpas pelo sumiço, que tentarei explicar em breve.

De tanto que ouvi, fui ver "Batman - O Cavaleiro das Trevas" com alguma esperança. Saí terrivelmente decepcionado.

Em primeiro lugar, não existe mais Gotham City, substituída por uma grande cidade americana. A morada do Batman agora é numa cobertura, de maneira que sua silhueta vista contra a cidade faz perguntar se ali seria Nova York, sendo que um prédio ao fundo lembra bem uma das torres gêmeas.

Com isso, o filme traz uma cidade real para heróis e anti-heróis alegóricos. Por quê? Não sei dizer muito bem qual a vantagem, mas o filme logo se estabelece dentro de uma linha hierárquica muito clara. Existe o prefeito, o procurador, a juíza, o futuro comissário de polícia e o Batman. Depois vem a população.

É nesse mundo, em que a Máfia tem um lugar muito específico, que vai aparecer o Coringa como elemento que, dizendo-se anarquista, prega o caos, via o terror. O terror será subsidiariamente, sua maneira de apostar que a natureza humana é insustentável (o que tornaria inúteis os heróis).

Essa fabulação tem um fim político preciso, i. é: combater o mal absoluto tem um custo, que consiste em viver nas sombras. Esse é o preço pago por Batman, mas, se formos pensar bem, há um outro personagem atual que pode reivindicar tal papel, e atende por George W.

Ao novo "Batman" me parece que falta um mínimo de elegância. Começa como um policial qualquer, bem urbano, retirando todo encanto de fabulário e alegoria que um dia possa ter tido (nas mãos de Tim Burton, sobretudo, mas até na do diretor seguinte a coisa corria mais agradavelmente). Impõe um tom gratuitamente crispado, fazendo do Coringa uma espécie de serial killer psicopático, ou seja, alguém que, por fugir ao normal, vale tudo para combatê-lo.

E todo o tempo o espectador pode se dizer: vale tudo para destruí-lo. Por todos os motivos essa é uma prioridade zero. Um cara assim não se prende, se mata etc.

Por fim, voltando ao princípio, e passando por todas as piruetas do roteiro para chegar ao atrapalhado final, algo permanece intocado: durante todo o filme torci para que algo viesse a desequilibrar a escala de poder. Nada. Nenhum traidor, exceto guardas ou coisas assim.

O poder na não-Gotham City de Christopher Nolan é irretocável. A destruição de metade do rosto do promotor não é senão uma dessas piruetas, não tem efeito prático nenhum. Toda a dúvida moral criada pelo Coringa cai em cima das pessoas comuns. Que elas o neguem no final, in extremis, não tem relevância maior: o importante, a afirmação de que o mundo é mesmo uma coisa sórdida, e que o trabalho dos verdadeiros heróis é necessariamente um trabalho sujo, está lá.

O caráter de filme policial realista enxertado de seres alegóricos é essencial para chegar a esse resultado.

Dizem que este é o Batman de Frank Miller (e o Coringa também). Talvez seja isso mais que tudo. Aquele "Sin City" já era isso e não engoli de jeito nenhum. É um investimento no pior, na baixeza, na podridão.

Resumindo minha impressão, o novo Batman é chato, ruidoso e reacionário.

Sunday, July 20, 2008

NOVA TRAMA TEM O MÉRITO DA COLOQUIALIDADE
INÁCIO ARAUJO


Depois de passar boa parte da vida fazendo filmes à maneira de Bergman, Woody Allen nos últimos anos parece dedicado a fazê-los à maneira de Fritz Lang. Era assim em "Match Point" e assim é em "O Sonho de Cassandra": a questão central é a do momento decisivo, em que se joga o destino do personagem.

O entrecho trata de dois irmãos muito diferentes entre si, mas próximos o bastante para manter uma relação de profunda cumplicidade.

Ian (Ewan McGregor) é o insatisfeito sócio do pai em um restaurante, que um dia topa com um mulherão -o que o deixa ainda mais insatisfeito em sua modéstia.

Tanto mais que, como o Zé da Bomba de "Depois Eu Conto" (José Carlos Burle, 1956), costuma passear com os carrões que clientes deixam na oficina do irmão.

Terry (Colin Farrell) é o mecânico estável, casado. Ou aparentemente estável, porque um jogador compulsivo.
Os dois são sócios no barco Sonho de Cassandra, que dá nome ao filme. Nada profundo: esse é o nome de um cavalo em que Terry jogou e se deu bem, o que permitiu que comprassem o barco.

Depois é que, para Terry, vêm as dívidas, enormes, e toda a torrente de ameaças que acompanham esse tipo de situação (Woody volta a evocar Dostoiévski, que serviu de base a "Match Point").

Toda a esperança dos irmãos está depositada em Howard (Tom Wilkinson), o tio rico.

Quando surge em Londres, mostra-se extremamente generoso com os sobrinhos, mas lhes pede algo em troca: terão de matar alguém.

Aí começa de fato o problema, pois tirar a vida de alguém é uma experiência infernal. Decidir-se por isso, assumir o momento único, espantoso, em que o crime se dará, é outro. Existe, por fim, o que vem após o assassinato.

Ou seja: depois de todos os circunlóquios, voltamos a "Crime e Castigo". Woody Allen é fiel a suas obsessões.

O crítico americano Roger Ebert compara este filme a "Match Point" de forma desfavorável. Considera que, naquela ocasião, Woody conseguiu tornar sublime um final inverossímil. Com todo o respeito, me parece que "O Sonho de Cassandra" tem o mérito, ausente em "Match Point", da coloquialidade.

"Match Point" carrega a tentação do grande cinema, o de arte: tem um aspecto tão pernóstico quanto a família londrina que hospeda o tenista.

"O Sonho de Cassandra" tem mise-en-scène mais próxima dos policiais de série e uma pessoalidade que parece ausente em "Match Point".

Sobretudo quando o tio Howard aparece, nunca se sabe se estamos diante de uma comédia ou de um drama -e, no entanto, estamos conscientes de que os dois gêneros estão lá, quase se cutucando. Mas não consegue evitar em inúmeros momentos esse lado um tanto pretensioso de Allen, essa necessidade de parecer profundo, que filmes como os de Lang não tinham, até porque eram os mais profundos.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 30 de abril de 2008)

Wednesday, July 16, 2008

BURTON CELEBRA IMAGINAÇÃO EM "PEIXE GRANDE"
INÁCIO ARAUJO


"Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas" foi recebido com frieza, quando lançado em cinemas.

Talvez essa rejeição tenha alguma relação com o fato de, nas livrarias, tantos leitores preferirem biografias às obras de ficção. Porque a biografia pelo menos traz "uma história que aconteceu de verdade", como alguém justificou.

Por que, atualmente, essa obsessão pela verdade? Então "A Metamorfose", de Kafka, não aconteceu "de verdade"? Nem "O Médico e o Monstro"? Ou mil outras histórias escritas ou filmadas?

Não, essa recusa da imaginação está mal explicada. Talvez a ficção contemporânea seja insuficiente. Talvez o homem contemporâneo seja um cético doentio. Ou o mundo seja tão mentiroso que a biografia lhe oferece o consolo da "verdade".

O fato é que, nessas circunstâncias, não é de estranhar que "Peixe Grande", um elogio da mentira e da imaginação por Tim Burton, tenha causado tanta desconfiança.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 15 de julho de 2008)

Sunday, July 13, 2008

"CRIME DELICADO" É INUSITADO E INQUIETANTE
INÁCIO ARAUJO


O crítico busca a perfeição. Não todos, talvez, mas com certeza Antônio Martins (Marco Ricca), o implacável crítico teatral de "Crime Delicado", que é um filme muito estranho.

Estranho no melhor sentido, entenda-se: de algo inusitado e de certa forma inquietante. Para Martins, é como se a arte, em vez de nos aproximar das coisas, permitisse a ele continuar longe e fora delas. A crítica é, nesse sentido, um exercício de poder, mas sua função é ser securizante: fixar as relações do crítico com o mundo.

O seu encontro com Inês (Lilian Taublib) vai transtorná-lo de maneira profunda. Ele se dá num bar. No teatro, o olhar tem apenas uma direção: o espectador vê o espetáculo. Num bar, ao contrário, ele vê e é visto. É assim que encontra Inês: sendo examinado.

O que poderia pensar de Inês? Falta-lhe uma perna. O que pensam os críticos de pessoas a quem falta uma perna? Merecem uma estrela a menos? Nesse caso, como julgar as estátuas gregas, sempre mutiladas? Ainda assim, elas são nosso critério de perfeição.

É entre a contemplação e o juízo crítico que se instala Inês na vida de Martins: é como a obra inovadora, que transtorna maneiras habituais de olhar. Com a diferença de que Inês não é uma obra de arte. Ou é? Por que devemos sempre achar que obras de arte são coisas mortas? É discutindo essas coisas que Brant faz esse que é talvez seu filme mais maduro.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de julho de 2008)

Wednesday, July 09, 2008

ROSSELLINI EXIBE SUA MODÉSTIA AMBICIOSA
INÁCIO ARAUJO

Em 1971, o cinema italiano vivia seus momentos de maior glória. Os discípulos e os contemporâneos de Roberto Rossellini, como Fellini e Visconti, rodavam seus maiores filmes e alargavam os horizontes de sua arte. Que fazia, nesse momento, Rossellini? Dedicava-se a desprezar o cinema, que se tornara para ele mercadoria na sociedade do espetáculo.

Dedicava-se também à TV, em que via a possibilidade de desenvolver uma arte liberta do comercialismo que tomara a indústria cinematográfica.

Dedicava-se, em suma, a fazer filmes de uma modéstia quase franciscana, como este "Sócrates".

"Sócrates" não é um filme entre outros de Rossellini. De certo modo ele é Rossellini, e boa parte dos diálogos em que se envolve (no filme), assim como seu comportamento, parecem espelhar, de alguma maneira, o grande cineasta italiano: a modéstia e, simultaneamente, a ambição de buscar a verdade, o desapego, o prazer de falar aos concidadãos.

Não será por acaso que "Sócrates" começa e termina por duas grandes derrotas de Atenas: a primeira, militar, frente a Esparta; a segunda, a morte do próprio Sócrates, acusado e julgado por outros atenienses. Assim como o do filósofo, é pedagógico o propósito de Rossellini: os louros do mundo talvez nos afastem mais da verdade do que qualquer outra coisa.

Beber cicuta, como Sócrates fez, morrendo por envenenamento, talvez não seja, em certos casos, a pior opção.

Tudo isso, não nos enganemos, é uma pedagogia cinematográfica.

Preferir o despojamento à riqueza, ficar com uma pequena produção que se domina em vez de uma grande que não se pode controlar, optar pelo que se tem a dizer, mesmo que com atores secundários fracos (já Jean Sylvère, como Sócrates, é prodigioso), tudo isso consiste em colocar a verdade à frente.

Ou seja, trata-se de um filme profundamente político, que opta -desde seu modo de produção - por certos procedimentos e rejeita outros tantos. Ora, o Sócrates de Rossellini não é de outra natureza. Num "extra" deste DVD, o professor de filosofia Roberto Bolzani afirma que Rossellini nos mostra um Sócrates político, isto é, empenhado em investigar as relações entre o intelectual e o poder. Ao mesmo tempo, é de um homem que não se afasta por nada (nem pela morte) de suas convicções que se trata.

Rossellini faz um filme respeitoso, bem diferente desses cuja obtusidade reverencia os sábios como se fossem de outra espécie. "Sócrates" tem fluência, humor e os melhores diálogos de todos os tempos.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de junho de 2008)

Friday, July 04, 2008

ROSSELLINI RETRATA SANTO COM VIGOR

INÁCIO ARAUJO

Enquanto seus colegas se dedicavam, nos anos 60 e 70 do século passado, a consagrar o cinema italiano como um dos mais criativos e conseqüentes do mundo, Roberto Rossellini explorava outro campo, o da TV.

Rossellini, "pai de todos" do cinema italiano, não achava correto o rumo que a indústria impunha à arte: ela se tornara um ramo do mundo do espetáculo. Tornara-se cara, luxuosa, desnecessariamente perigosa (o perigo do fracasso).

Na TV, podia endereçar-se a todos os espectadores, dar seqüência à sua idéia de cinema como arte democrática, aberta a todos. Ninguém pense, por isso, que ele estava disposto a fazer concessões: a idéia de filmar para a televisão (estatal, é necessário precisar) permitia-lhe, justamente, não fazer as concessões comerciais que outros tinham de fazer para conquistar o público.

Tomemos seu "Santo Agostinho", de 1972. Quem se interessa pelo personagem? Um santo do século 4, ainda que com reputação de sábio e alguns livros clássicos, ainda que com muita influência na vida espiritual do Ocidente, até hoje não chega a ser um assunto para multidões. Rossellini pouco se importa com isso. Primeiro, nos seduzirá pela beleza.

Não essa beleza que vem do desejo de "fazer bonito". A beleza vem das coisas, não da filmagem. Nesse sentido, certas imagens fazem lembrar as de Pier Paolo Pasolini, seu ilustre discípulo.

Em segundo lugar, Rossellini trata Agostinho e sua época com rigor. Lá está ele, a partir do momento em que é elevado a bispo de Hipona, na África. É um momento de paixões: ao lado dos cristãos, há os hereges (são mencionados com insistência os donatistas, sejam quem forem) e os pagãos com quem tratar. Há um Império Romano em decadência, assaltado por bárbaros, e o risco de a culpa cair nos cristãos.

Esse momento Rossellini ilustra com frieza, apenas expondo com a maior exatidão possível a infatigável busca do bispo para impor a sabedoria num mundo convulsionado, em crise, em que as verdades absolutas tendem a ser varridas por meias-verdades ou oportunismos vários.

Ao falar de Agostinho de Hipona com tanto rigor e vigor, Rossellini não deixa de se endereçar, no entanto, ao mundo cheio de meias-verdades da atualidade. Ele não tem uma mensagem para nós. Agostinho é que tem. Rossellini cala para que o santo fale. Limita-se a mostrar. É o que fazem os grandes cineastas. Daí resulta um filme grande e raro.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de abril de 2007)

Tuesday, July 01, 2008

TUDO É QUESTÃO DE PERNAS EM "A BELA DO BAS-FOND"
INÁCIO ARAUJO


Pode ser coincidência, pode ser uma homenagem do canal TCM a Cyd Charisse, que morreu há poucos dias. O fato é que hoje às 22h o canal exibe "A Bela do Bas-Fond" (classificação indicativa não informada), possivelmente o papel dramático mais interessante da célebre bailarina da Metro.

Aqui ela faz uma fabulosa garota de programa que, entre outras coisas, atende a um grupo de gângsteres. Entre eles está Robert Taylor, talentoso advogado do bando. Nicholas Ray, o diretor do filme, faz a figura deste advogado coxo contrastar com as pernas perfeitas de Cyd Charisse.

Em suma, tudo é uma questão de pernas. Taylor não dança e mal caminha por si próprio. Quem caminha por ele, quem o puxa pela mão é Lee J. Cobb, o líder da gangue. É a cabeça, portanto, que a mulher deve tocar para que ele possa firmar-se nas próprias pernas.

Este belo filme foi filmado em cinemascope. A chance de a TV exibi-lo no formato que lhe é próprio, é mínima. A TV também é manca.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 01 de julho de 2008)