Canto do Inácio

Tuesday, January 23, 2007

MANN EM DISCUSSÃO
INÁCIO ARAUJO

No "Mais!" da Folha, uma entrevista com Bento Prado Jr., que acaba de morrer. Ele diz a horas tantas que, em filosofia, o teu melhor amigo é o teu pior inimigo.
Quer dizer, em linhas gerais, que só se aprende com a discordância, pela discordândia. Como eu até hoje não compreendi porque muitos amigos acham o Michael Mann o máximo, o Bruno Andrade escreveu o texto abaixo, que eu agradeço e partilho. O Bruno também anda odiando o Scorsese e aproveita para uma espinafrada.

CARTA DE BRUNO ANDRADE

Mann tem um problema crucial de recepção crítica, aqui no Brasil (mas não é só aqui não): o esteticismo impressionista e caipira da nossa crítica não ajuda muito a enxergar as inúmeras qualidades de uma arte que é bem mais discreta e zelosa, e bem menos espalhafatosa e formalista, do que andam pintando por aí. É uma arte até bastante literária, de dramaturgia cênica mesmo, só que não nos mesmos termos daquilo que nos acostumamos a ver e entender como 'dramaturgia cênica' com os grandes mestres do passado - Lang, Walsh, Hitchcock, Losey, Dreyer, Preminger... E algo muito complicado o separa também dos mestres saídos das escolas de cinema - Carpenter, De Palma, Coppola -, porque o ofício dele tem muito menos a ver com a emergência de um diálogo entre o cinema e as tecnologias analógicas (como foi nos anos 80 com DO FUNDO DO CORAÇÃO, BLOW OUT e THEY LIVE) e sim com uma nova situação que tem menos a ver com apenas o digital e muito mais a ver com as fraturas da civilização dos últimos 15, 10 anos (que é o que filmes como O INFORMANTE e MIAMI VICE põem em discussão).
Pessoalmente, como gancho ou dica, dou a seguinte: Mann pega o mito de Fausto (O INFORMANTE é sobre isso, COLATERAL é sobre isso, ÚLTIMO DOS MOICANOS e THIEF também) e o leva para uma direção bem oposta da de um De Palma, para ficar só num exemplo.
Agora, sobre Scorsese: pessoalmente - ênfase nesse 'pessoalmente', porque pode ser apenas uma dificuldade da minha visão rural, catarinense das coisas com a visão Nova Yorkina, ultraurbana de um Scorsese - não vejo nada que destaque muito os filmes recentes dele (e particularmente OS INFILTRADOS) dos filmes que um Gordon Douglas fez no final dos anos 60 - particularmente os policiais com o Frank Sinatra. As resoluções formais, extremamente confusas e atrapalhadas, não vão muito além de um maneirismo capenga e afobado (para não dizer caduco), uma profusão de efeitos e outras afetações (por exemplo, os Xs de OS INFILTRADOS, que apenas evidenciam como o Scorsese hoje é incapaz por si só de pensar uma geometria coerente com as razões dramáticas do seu filme - coisa que um Siegel, por exemplo, tirava de letra com um DIRTY HARRY, um MADIGAN ou um THE KILLERS -, e para compensar essa preguiça precisa pegar emprestado expedientes de cineastas que ele adora - no caso dos Xs, é Hawks e SCARFACE obviamente -, o que é bem diferente do processo canibalesco/questionador de um De Palma ou um Todd Haynes)... E a utilização desta profusão de efeitos não tem a ver com o excesso, por exemplo, em um Chabrol ou um Fassbinder, que trabalham com narrativas e dramaturgias, mas jogam estas para escanteio ou simplesmente as sabotam (ao menos num ROLETA CHINESA ou num A TEIA DE CHOCOLATE) quando precisam ir direto ao que interessa à arte fundamentalmente maneirista que praticam; já o que Scorsese vem tentando é uma arte puramente dramática, bastante teatral mesmo (o que em si não constitui nenhum problema - vide Renoir, Losey, Ford, Straub, Mizoguchi...), o que nunca foi o seu forte - ao menos não nos manifestos punks como O REI DA COMÉDIA, DEPOIS DE HORAS, A COR DO DINHEIRO e GOODFELLAS.

...

É um belo texto, e aproveito para pedir ao Bruno alguns esclarecimentos. Por exemplo:
1) quais são as fraturas recentes da civilização a que ele se refere e de que o MM daria conta?;
2) dá para destrinchar um pouco mais o que seria o diálogo entre o cinema de mestres citados na carta e as tecnologias digitais? ou a relação entre o MM e as tecnologias analógicas?

Enfim, acho que essas explicitações me ajudariam muito.

O debate está aberto.

Friday, January 19, 2007

MEUS FAVORITOS
INÁCIO ARAUJO

Um pouco de propaganda.

Meus sites de cinema preferidos, nas várias modalidades, todo mundo sabe quais são.

Contracampo e Cinética - sites da nova crítica, com dossiês muito bons além de cobertura da atualidade.

Críticos.com.br - podia se chamar críticos s/a, pois não há uma linha editorial propriamente dita. O leitor escolherá seus autores preferidos. Tem trabalhos também muito interessantes. Recentemente, publicou uma entrevista muito esclarecedora do Evaldo Mocarzel com o Moniz Vianna.

Mnemocine - apesar do nome horroroso publica ensaios por vezes muito bons, de natureza em geral universitária.

Reduto do Comodoro - o site do Carlão Reichenbach é uma beleza. Lá se encontra de tudo. Em especial endereços inesperados.

A esses acrescento a Revista Zingu, que conheci há pouco tempo e faz, sobretudo, um trabalho de pesquisa fascinante, descobrindo profissionais que ninguém sabe mais onde andavam e que representam uma parte muito significativa da história do cinema brasileiro (a mais obscura, sintomaticamente). Em um número recente, localizaram o Concórdio Matarazzo.

Deve haver muitos outros. Quem tiver dicas, por favor, passe.

Thursday, January 11, 2007

“FURY”
INÁCIO ARAUJO

Transcrevo a íntegra de uma carta publicada pelo Painel do Leitor da Folha de ontem, 10/1/2007:

"Alguém deveria dizer a Daniela Cicarelli que, quando se quer privacidade, faz-se o que se quer, mas "entre quatro paredes". Nada justifica a ordem de tirar o Youtube do ar, até porque temos lá vídeos sérios e educativos. A Cicarelli, que já representava uma vergonha para o sexo feminino, não tem limites para chamar a atenção, tentando de todas as formas fazer o seu marketing pessoal".
Ana Prudente (São Paulo, SP).

Pensei, lendo isso aí, que estamos nos tornando um povo de linchadores. Essa gente tem sempre uma lição a dar sobre como as coisas devem ser ("alguém deveria dizer a"), acumula suposições que transforma em verdade (como se "a ordem" para tirar o Youtube tivesse sido dada pessoalmente pela D.C.), verdades supostas que viram acusações (ela tenta "por todas as formas fazer seu marketing pessoal"), e acusações que logo passam a condenações sumárias (ela já era "uma vergonha para o sexo feminino").
A pessoa é, claro, de São Paulo, onde por algum motivo, talvez por causa da falta de paisagem, o rancor e o ressentimento se disseminam com facilidade.

Não tenho a menor idéia de como essa situação, absolutamente perversa, poderia mudar, mas parece algo para começar a nos preocupar.

Isso não parece o filme do Fritz Lang?

Wednesday, January 03, 2007

CARLOS M. MOTTA
INÁCIO ARAUJO

Péssima, embora previsível, a notícia da morte de Carlos M. Motta.
Quando comecei a fazer a coluna de Filmes na TV na Folha, a gente se servia de livros de referência tipo Leonard Maltin. Mas eles nunca tinham tudo. O Motta é que tinha. Quem me disse para procurá-lo na hora do aperto foi o Rubens Ewald. Sempre que precisei dele, o Motta se desdobrou. Desbravava seus arquivos e coleções para trazer a informação. Nunca quis crédito por isso. Nunca fui seu amigo propriamente, mas me alegrava encontrá-lo nas sessões de imprensa. Foi uma pessoa leal, íntegra, bondosa. Ele morreu ainda em 2006. Recebi a notícia no 2 de janeiro. Não foi a única notícia fúnebre do dia. Espero que o resto de 2007 seja melhor para todos.

Monday, January 01, 2007

"Terra dos Mortos" evoca "Metrópolis"
INÁCIO ARAUJO

É necessário voltar à "Terra dos Mortos", porque existe certa injustiça em nomear George A. Romero como mestre do terror em vez daquilo que é: mestre do cinema moderno, simplesmente.

E fazer filmes de gênero, de um gênero, aliás, não o diminui. As questões que levanta são análogas às de um David Lynch, de um David Cronenberg, de um Kiarostami. Dizem respeito à representação e sua verdade, por exemplo, ou a passar do falso ao verdadeiro, do convencional ao real.

Romero não é um intuitivo. "Terra dos Mortos" é clara evocação do "Metrópolis", de Fritz Lang. Os zumbis do filme correspondem, em comportamento, aos operários lobotomizados do filme de Lang. O grande edifício onde os ricos se abrigam vem diretamente do jardim das delícias em que viviam os ricos de "Metrópolis".
E há ainda o ricaço que foge com dinheiro, como em "O Tempo das Diligências", de John Ford, e a amizade entre dois homens, sendo que um deles faz, ao atirar, o mesmo gesto de Gary Cooper em "Sargento York".

Tantas evocações de justiça não são por acaso neste mundo dividido em classes sociais, onde não será difícil divisar o ideário neoliberal em ação.
Mas são os zumbis que mais nos aproximam da questão do controle social, já que eles são controlados por fogos de artifício. E o que são? Um espetáculo. Isso é o que os hipnotiza.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 10/12/2006)