Canto do Inácio

Thursday, November 27, 2008

MEIA-ENTRADA
INÁCIO ARAUJO

Não sei por que, cada vez que vejo a classe artística aplaudindo alguma coisa no Congresso espero pelo pior. A arte e o congresso deveriam ser inimigos. Ou então se trata de arte oficial. Na história da meia-entrada, lá estavam os artistas, aplaudindo.

Essa história de meia-entrada é complicada. Falo do ponto de vista do cinema (os artistas no Congresso acho que pensavam em termos de teatro: para começar, talvez sejam situações diferentes). Os exibidores reclamam, há tempos, que precisam cobrar caro por causa da meia-entrada.

Pode ser. O Leon Cakoff escreveu artigos a respeito, mas nunca mostrou uma planilha de custos ou algo assim, de maneira que tudo me parece uma suposição, uma coisa meio impressionista.

Consideremos que, de fato, a meia-entrada ajude a encarecer o ingresso. Cada vez que vou ao cinema vejo que 80% do público é composto de estudantes. Se a cota de meias será limitada a 40% de cada sessão (supondo que isso possa ser controlado, o que me parece impossível), é justo imaginar que haverá uma queda de público considerável, mesmo que o preço do ingresso inteiro caia.

Para que exista compensação na receita, seria necessário então que o público não estudantil, os demais, crescesse ao menos na mesma proporção.

Isso pode acontecer? Existe algum estudo nesse sentido? Alguém sabe de alguma coisa? Temo que mais uma vez um assunto complicado (talvez até complexo) vá ser resolvido no tapa.

Tuesday, November 25, 2008

JACQUES TOURNEUR CONSTRÓI CINEMA SEM FIRULAS
INÁCIO ARAUJO


Não há personagem mais interessante no cinema americano do que Jacques Tourneur. Diferente de quase todos os estrangeiros em Hollywood, o francês foi cedo para os EUA, acompanhando o pai, Maurice Tourneur. Voltou à França no final dos anos 20 e chegou a fazer um filme, mas logo retornou aos EUA, onde efetivamente fez carreira.

Certa vez, perguntaram-lhe porque seus filmes eram melhores do que os europeus. Ele, na lata: "Nos meus filmes ninguém abre a porta dos carros".

A explicação é insuficiente, claro, mas pode ser traduzida assim: é preciso ir ao ponto, não perder tempo com o acessório.

Tourneur é reconhecido como um autor, mas isso se deve unicamente pela capacidade de imprimir um olhar próprio aos roteiros que recebia, quase sempre, prontos. E um ponto de honra para ele é que só tinha se recusado uma única vez a fazer um filme, pois não concebia Burt Lancaster no papel de índio. O filme era "Apache", e foi Robert Aldrich quem rodou-o - com excelentes resultados, por sinal.

Em um DVD meio precário foi lançado no Brasil seu "Sangue de Pantera", primeira associação sua com o produtor Val Lewton. Estranho casal! Tourneur dizia que adorava filmar com Lewton, porque Lewton era um sonhador, e ele, um homem pé na terra.

Tourneur fez magníficos filmes noir, como "Fuga do Passado". Fez capa-e-espada, como "O Gavião e a Flecha".


Entre seus faroestes dos anos 50, convém atentar a "Dívida Amarga", onde o jogador Robert Stack, após ganhar no carteado um hotel em Denver, viverá o começo da Guerra de Secessão e se verá entre duas bandeiras e entre duas mulheres. Tourneur irá sempre ao ponto. O filme, promete a emissora, vem dublado e, como é colorido, não há risco de ser colorizado.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 31 de julho de 2005)

Tuesday, November 18, 2008

ESSÊNCIA ESCAPA EM "O GOSTO DA CEREJA"
INÁCIO ARAUJO


O despiste é uma parte essencial da arte de Abbas Kiarostami e é a essência mesmo de "O Gosto da Cereja". O filme nos mostra a trajetória de Badii, homem de meia-idade disposto a se suicidar, que busca alguém para se ocupar de seu corpo após a morte.

Badii viaja por uma região desértica, com seu carro vai encontrando as pessoas a quem dá carona, e a cada uma com quem conversa expõe seu plano. Encontra resistências, é óbvio, mas, mais do que tudo, escuta conselhos sobre a vida, seu caráter sagrado etc.

Escutamos os argumentos de ambos os lados, mas sempre mantemos a convicção de que o essencial escapa. Ou seja, nunca nos é dito por que esse homem deseja se suicidar. Correu, na época do lançamento do filme, que esse homem seria homossexual, o que configuraria um duplo crime diante da lei islâmica (o primeiro sendo o suicídio).

A explicação está longe de ser convincente, ao menos à luz do que se vê no filme: Badii surge apenas como um sujeito com um carro em busca de alguém que preste um serviço. Não é do feitio de Kiarostami agitar questões polêmicas, e não porque fuja delas. É que seu cinema funciona como um espelho. Ele nos dá exatamente o que dele recebemos.

Como num espelho, o que vemos é o que expomos. O que retiramos da imagem é o que lhe damos.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de novembro de 2008)

Tuesday, November 11, 2008

SPIKE LEE EXPÕE SEU DISCURSO RADICAL E IRADO
INÁCIO ARAUJO


Com Spike Lee não existe negociação: "A Hora do Show" vem como vem, às vezes torto, às vezes excessivo, quase histérico. Mas essa é também a medida de sua integridade. Em nenhum momento se abre mão de idéias em favor do brilhareco.

E as idéias de Spike, sabe-se, giram em torno da difícil integração dos negros na sociedade norte-americana. No início, existe Delacroix, um produtor de TV negro, formado em Harvard (ou outra faculdade dessa estirpe), bem-sucedido. Um gênio criativo, como diz o diretor da estação.

Mas esse diretor -na aparência, e só, um não racista- pede a Delacroix um programa em que os negros apareçam de outro modo que não na forma de pessoas de classe média, bem-sucedidas etc., enfim a idéia difundida nestes tempos de correção política.

Em protesto contra isso, Delacroix bola um show de "blackfaces" (atores que pintavam o rosto de negro, mesmo quando eram negros) representando dois idiotas de uma plantação do sul dos EUA. Ele acredita que será um fracasso e a comunidade negra protestará contra aquilo.

Não é bem o que acontece. O show será ao mesmo tempo o momento de glória e derrota de Delacroix, o negro integrado.

Para isso contribui a natureza da TV, sempre apta a receber o que existe de mais torpe. Mas essa natureza não nasce do nada. Ela tem como cúmplices os espectadores, brancos e negros.

Em certo sentido, estamos dentro de um discurso tradicional sobre a televisão e sua capacidade de produzir aberrações.

Ao mesmo tempo, Spike nos conduz ao inferno racial americano (mas limitá-lo aos EUA seria injusto) com a mesma agressividade de seus primeiros filmes. Como em "Febre na Selva" ou "Faça a Coisa Certa", os negros ora assumem a atitude do branco, ora mostram-se impermeáveis a ela. Em ambos os casos, a integração é um beco sem saída. Por outro lado, os brancos só aparentemente se libertam do racismo.

Mais do que em seus primeiros filmes, Spike Lee leva as contradições da formação americana ao paroxismo. Não há mais lugar para sutilezas: trata-se de designar, com clareza, o estado de guerra que vigora entre brancos e negros.

Se hoje o tratamento dado aos negros é cheio de dedos, o filme nos remete à imagética tradicional do homem branco a respeito do negro, como a perguntar: será possível que toda essa violência (de que o "blackface" é um aspecto importante, mas o filme nos revela outros) perdeu-se, anulou-se, em vista de um novo entendimento das coisas criado a partir dos anos 60?

A resposta de Spike é clara: não, uma mentalidade secular não muda assim tão fácil. O que se cria, na verdade, são imagens confortáveis, dentro das quais o branco pode purgar sua possível culpa. O mundo continua igual.

Discurso radical - em que um dos pontos de apoio é a internalização pelo negro dessa imagética criada pelos brancos -, irado, impermeável. E portanto longe do frufru habitual do cinema dito independente. Spike é um cineasta de idéias, realmente. E "A Hora do Show", um filme fundamental.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 06 de julho de 2001)

FILME CONTRA O RACISMO FICA NA BOA VONTADE
INÁCIO ARAUJO

Primeira história: não sei se o personagem era Michael Jordan ou algum outro, mas em essência era assim: o sujeito adorava Michael Jordan, mas era racista. Um dia ele encontra o ídolo, que lhe pergunta como o cara podia gostar dele e ser racista ao mesmo tempo. E o cara responde que ele não era negro, era Michael Jordan.

Segunda história: Fritz Lang é convocado por Goebbels e convidado a assumir a direção do cinema nazista na Alemanha de 1933. Lang diz que não seria possível, porque ele era meio judeu, por parte de mãe ou de pai. E Goebbels: "Aqui quem decide quem é judeu ou não somos nós".

Ou seja, o racismo é um fenômeno irracional, de maneira que filmes de boa vontade, como "Mississipi em Chamas", por mais que se oponham a ele, acabam errando o alvo: é perfeitamente possível torcer contra os vilões racistas e permanecer preconceituoso. Em todo caso, há uma boa aventura no filme de Alan Parker. A ela.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 08 de julho de 2008)

Wednesday, November 05, 2008

FAÇA A COISA CERTA
INÁCIO ARAUJO


Li em algum lugar - e se a memória não me trai - que o primeiro filme que o Obama viu (ou que foi ver com a então namorada, hoje mulher) foi "Faça a Coisa Certa".

Ontem varei a madrugada acompanhando a apuração, mudando de canal para canal, obsessivamente, e acho que o momento em que acabou a votação na Costa Oeste e a CNN deu as previsões de Califórnia, Oregon etc., e tudo foi ficando azul no mapa, tenho a impressão de que foi um dos momentos mais fantásticos que jamais sonhei viver.

A minha geração viu Bob Kennedy entrando de lança-chama (ou quase isso) na Universidade do Alabama para garantir o direito de um negro a estudar ali. Ainda ouvimos notícias de linchamentos no sul. Seguimos a carreira de um governador do Alabama (me esqueço o nome, há um telefilme sobre ele) que virou racista só para poder se eleger (depois levou um tiro, ficou paralítico e abriu uma fundação pela igualdade racial...) Acompanhou de Martin Luther King a Malcolm X, seguiu os Panteras Negras, achou que Jesse Jackson era maluco, quando ousou pensar em se tornar presidente.

Enfim, o que queria dizer é o seguinte. Para mim, o melhor momento de ontem foi na TV5, quando ministro francês da Defesa entrou e disse o seguinte: os americanos estão nos dando uma baita lição. Porque na França não existe NENHUM deputado com origem nas antigas colônias que tenha sido eleito no território metropolitano (isto é, que não venha da Guiana, de ilhas distantes, de algum reduto colonial ainda existente).

Bem, quanto a nós, sem comentários, não é? A simples existência do Obama é uma lição. Nós que nos orgulhamos tanto de nosso não racismo, não temos governadores, nem senadores, nem professores universitários (salvo exceções), nem nada que sejam negros. Nós que tanto falamos do racismo americano acho que levamos uma dessas bofetadas com luvas de pelica, não?

Desculpe, não tem quase nada isso a ver com cinema. Mas o "Faça a Coisa Certa" não entra na história dele, me parece, por acaso.

Sunday, November 02, 2008

PODER DA ARQUITETURA GUIA ROHMER ATÍPICO
INÁCIO ARAUJO


Tudo em "O Amigo da Minha Amiga" é questão de arquitetura. Arquitetura amorosa, primeiro, pois para as amigas Blanche e Lea trata-se de descobrir o que é verdadeiramente o amor e como distinguir o homem certo do errado. Arquitetura narrativa, em seguida, pois vemos aqui uma dessas histórias com final previsível, onde o que nos dá prazer, no entanto, não é a revelação do que vai acontecer com os personagens, mas de como isso se dará.

Arquitetura propriamente dita, por fim, pois estamos em Cergy-Pontoise, subúrbio pós-moderno parisiense, cidade planejada, com espaços ao mesmo tempo generosos e restritos, pois ali todos parecem se cruzar o tempo todo. Cergy é um local que rompe com os preceitos utilitários da modernidade para afirmar certa vacância do espírito (e da estética).

É, portanto, nesse lugar em princípio meio rebarbativo que Eric Rohmer encontra refúgio para as buscas amorosas. Por uma vez em seus filmes não se discute filosofia, fé, música ou pintura. Os personagens tratam de natação e windsurfe, de férias e namoro.

Há dois anos sem namorar, Blanche suspira pelo bonitão Alexandre, por quem todas as garotas parecem se apaixonar. Lea chegou a um estágio meio crítico em seu namoro com Fabien: não sabe mais se está apaixonada por ele ou não, se o ama ou se aborrece com ele. Saber qual será seu futuro com Fabien implica descobrir quem ela própria é.

O que torna este sexto filme das "Comédias e Provérbios" tão atípico é que, pela primeira vez nesta série o problema se coloca de saída. Habitualmente, os personagens rohmerianos sabem quem são. Ou melhor, pensam que sabem. Acreditam ter domínio sobre seu destino, graças a um exercício mais ou menos permanente de intelectualização dos sentimentos. Tudo passa pela razão.

Aqui, nada disso: assim como a nova cidade se impõe a eles (todos estão lá por necessidade profissional), também os sentimentos impõem-se à razão e, não raro, a superam. Ninguém pensa demais, nem obsessivamente. A preocupação principal de cada um é não machucar quem está por perto, de um modo ou de outro. Mas isso já implica imaginar. Assim como Blanche não está apaixonada por Alexandre, mas por uma imagem - o que logo adivinhamos -, todos imaginam algo a respeito dos demais, o que traz como decorrência a intriga que se desenha diante de nós.

Uma intriga entre pessoas menos intelectualizadas do que nos acostumamos em Rohmer, embora nem por isso seja possível dizer que o filme é menos intelectual. Uma intriga mais clássica do que aquelas a que nos acostumou Rohmer, porque segue certas regras estritamente (o happy end, por exemplo) e não evita mesmo o final um tanto clichê.

Isso, a rigor, não conta: o que nos dá prazer em "O Amigo da Minha Amiga" não é propriamente aonde os personagens chegam, e sim os caminhos que percorrem para chegar a um determinado ponto. Nesse sentido, o filme tem o brilho de um grande Rohmer e nos ajuda a esperar que um distribuidor iluminado nos traga seu "Agente Triplo".

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de julho de 2005)