Canto do Inácio

Tuesday, November 11, 2008

SPIKE LEE EXPÕE SEU DISCURSO RADICAL E IRADO
INÁCIO ARAUJO


Com Spike Lee não existe negociação: "A Hora do Show" vem como vem, às vezes torto, às vezes excessivo, quase histérico. Mas essa é também a medida de sua integridade. Em nenhum momento se abre mão de idéias em favor do brilhareco.

E as idéias de Spike, sabe-se, giram em torno da difícil integração dos negros na sociedade norte-americana. No início, existe Delacroix, um produtor de TV negro, formado em Harvard (ou outra faculdade dessa estirpe), bem-sucedido. Um gênio criativo, como diz o diretor da estação.

Mas esse diretor -na aparência, e só, um não racista- pede a Delacroix um programa em que os negros apareçam de outro modo que não na forma de pessoas de classe média, bem-sucedidas etc., enfim a idéia difundida nestes tempos de correção política.

Em protesto contra isso, Delacroix bola um show de "blackfaces" (atores que pintavam o rosto de negro, mesmo quando eram negros) representando dois idiotas de uma plantação do sul dos EUA. Ele acredita que será um fracasso e a comunidade negra protestará contra aquilo.

Não é bem o que acontece. O show será ao mesmo tempo o momento de glória e derrota de Delacroix, o negro integrado.

Para isso contribui a natureza da TV, sempre apta a receber o que existe de mais torpe. Mas essa natureza não nasce do nada. Ela tem como cúmplices os espectadores, brancos e negros.

Em certo sentido, estamos dentro de um discurso tradicional sobre a televisão e sua capacidade de produzir aberrações.

Ao mesmo tempo, Spike nos conduz ao inferno racial americano (mas limitá-lo aos EUA seria injusto) com a mesma agressividade de seus primeiros filmes. Como em "Febre na Selva" ou "Faça a Coisa Certa", os negros ora assumem a atitude do branco, ora mostram-se impermeáveis a ela. Em ambos os casos, a integração é um beco sem saída. Por outro lado, os brancos só aparentemente se libertam do racismo.

Mais do que em seus primeiros filmes, Spike Lee leva as contradições da formação americana ao paroxismo. Não há mais lugar para sutilezas: trata-se de designar, com clareza, o estado de guerra que vigora entre brancos e negros.

Se hoje o tratamento dado aos negros é cheio de dedos, o filme nos remete à imagética tradicional do homem branco a respeito do negro, como a perguntar: será possível que toda essa violência (de que o "blackface" é um aspecto importante, mas o filme nos revela outros) perdeu-se, anulou-se, em vista de um novo entendimento das coisas criado a partir dos anos 60?

A resposta de Spike é clara: não, uma mentalidade secular não muda assim tão fácil. O que se cria, na verdade, são imagens confortáveis, dentro das quais o branco pode purgar sua possível culpa. O mundo continua igual.

Discurso radical - em que um dos pontos de apoio é a internalização pelo negro dessa imagética criada pelos brancos -, irado, impermeável. E portanto longe do frufru habitual do cinema dito independente. Spike é um cineasta de idéias, realmente. E "A Hora do Show", um filme fundamental.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 06 de julho de 2001)

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