Canto do Inácio

Friday, July 24, 2009

"COLATERAL" OFERTA AO PÚBLICO UMA VIAGEM DIVERTIDA
INÁCIO ARAUJO

Amigos vivem tentando me convencer da genialidade de Michael Mann. Pode ser, não descarto. Mas devo admitir que não a compreendo, ao menos até agora. Isso não me impede de ver em "Colateral" um dos filmes americanos mais divertidos dos últimos anos.

O que temos lá? Uma viagem em que desconhecemos os objetivos, mais ou menos como o chofer de táxi (Jamie Fox) contratado por Tom Cruise. Este último é um matador com agenda cheia: vai de um ponto a outro para executar sua tarefa.

A diversão vem em grande parte de nossa ignorância: o que acontece, de fato? E por que acontece? Não sabemos, ou sabemos tão pouco quanto o taxista.

E será que o próprio matador sabe muito? Nossas vidas talvez sejam isso mesmo: pura alienação, como a deles, um deslocamento, uma vida colateral à vida. Não importa. Importa embarcar, viajar, ver no que as coisas vão dar. Aliás, talvez não haja alternativa.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 21 de março de 2003)

Monday, July 13, 2009

DIMENSÃO DA GUERRA SURGE EM "PECADOS"
INÁCIO ARAUJO


Se o realizador de "Procedimento Operacional Padrão" (que passa na Mostra de São Paulo deste ano) tivesse visto - ou levado a sério - "Pecados de Guerra" perceberia que o crime de tortura, cometido na Guerra do Iraque e em que se detém, não é o verdadeiro crime.

O crime é a guerra em si. De certa forma, o documentário recente quer até desenvolver esse ponto de vista: acima dos envolvidos na tortura está o Estado Maior e acima dele, ainda, a Casa Branca e a guerra com sua insânia.

O curioso é que tudo isso está em "Pecados de Guerra", que tem no centro um soldado que se recusa a violentar e matar uma jovem vietnamita, ao contrário de seus outros quatro companheiros. Pode parecer que "Pecados" individualiza a questão. Não é bem assim: ele apenas faz o caminho inverso, da guerra e da Casa Branca até chegar aos soldados criminosos. A questão não é apagar os pecados, é dar-lhes a dimensão devida.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 22 de outubro de 2008)

Monday, July 06, 2009

FILME LIMITA RETRATO DA TORTURA
INÁCIO ARAUJO


São três as fontes de imagem de "Procedimento Operacional Padrão": as fotos que registram cenas de tortura e humilhação de prisioneiros em Abu Ghraib, Iraque, os depoimentos dos envolvidos com essas fotos (torturadores e assemelhados, chefes imediatos etc.) e reconstituições de momentos específicos.

A fonte decisiva é a primeira, já que as fotos, ao se tornarem mundialmente conhecidas, colocaram em questão os procedimentos do exército norte-americano e de seus soldados.

A idéia da suposta superioridade moral da ação para caçar terroristas e depor um governo tido como ilegítimo ficou tremendamente enfraquecida.

A atitude dos oficiais seguiu um padrão, digamos, universal: culpar os pequenos (soldados, cabos, sargentos) e isentar o oficialato e o governo.

Mais do que revelar os maus-tratos, as fotos dão conta da banalidade que envolve o tratamento do tema. Algo tanto mais assustador porque é o povo campeão da liberdade que produziu tais aberrações (o que permite supor que não seja diferente em outras prisões, como Guantánamo).

A segunda fonte de imagens é o depoimento dos envolvidos.Aquela moça, por exemplo, que se celebrizou por sorrir e erguer o polegar ao constatar a suprema humilhação de um prisioneiro. Na tela, o que se vê é outra coisa. Não se trata de alguém, em princípio, repulsivo. Equivocada, certamente.

Amplitude

A soma dos depoimentos é muito comprometedora e, com efeito, deveria ajudar os EUA a repensar suas políticas político-carcerárias que, bem mais do que suas vítimas, tende a desmoralizar a América (ou então proibir câmeras de foto e vídeo nesses locais).

A terceira fonte de imagens, a esquecer, são as reconstituições verídico-estetizantes, que funcionam como vinhetas para suavizar e ritmar a narrativa.É importante distinguir os fatos da representação. Os fatos, impressos nas fotos, são inquestionáveis e infames. Revelá-los e confrontá-los com depoimentos de pessoas próximas, de um modo ou de outro, a eles é por si um mérito do filme.

Não é menos verdade, no entanto, que Morris não consegue mostrar a tortura como política de governo, nem como pensamento articulado a outros aspectos da vida americana recente. Talvez não tenha se interessado por isso.

Ao tratar os personagens, não lhes deu a amplitude que um, digamos, Eduardo Coutinho dá aos entrevistados. É provável que isso não lhe tivesse ocorrido. Fez um retrato estritamente funcional, destinado a demonstrar o que tinha em mente sobre o episódio e as fotos. Ao não desenvolver hipóteses mais arrojadas do cinema recente, como as mencionadas acima, Morris pode ter levado adiante um trabalho capaz de repercutir junto ao público americano. Mas, para tanto, ele paga o preço de limitar seu trabalho a ocupar-se, basicamente, dos aspectos morais e jurídicos de um caso que é, possivelmente, a maior abominação conhecida do século 21.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 14 de outubro de 2008)

BOAS CENAS SEDUZEM 50 ANOS DEPOIS
INÁCIO ARAUJO


"Primárias" é o nascimento do cinema direto. O que ele tem de direto ou de original em relação ao "cinema verdade" do francês Jean Rouch é, basicamente, a maneira de se aproximar de seu objeto.

Robert Drew e seus colaboradores (Richard Leacock, D.A. Pennebaker, Albert Maysles) aspiravam à transparência completa quando filmavam as eleições primárias do Partido Democrata em Wisconsin, em 60, em que estavam envolvidos John F. Kennedy e Hubert Humphrey. Não entrevistavam os candidatos, buscavam captar fragmentos de vida em estado de, digamos, pureza.

Como no caso de Rouch, seu trabalho se organiza em razão de novos equipamentos: câmeras e gravadores portáteis o bastante para registrar cenas em toda a sua espontaneidade. A narrativa evita comentários do realizador. A idéia é que as imagens falem por si. O exemplo mais evidente talvez seja o momento em que captam Humphrey dormindo no carro. Não é fácil obter imagens de um senador dormindo. Ainda mais se candidato à Presidência. Mas eles dormem.

Os feitos dessa natureza tendem, no entanto, a nos comover menos hoje do que imagens mais simples (embora inimitáveis): o lado "pop star" de Kennedy, perceptível na forma como as jovens se relacionavam com ele. Ou a mudança dos fazendeiros antes e depois da fala de Humphrey, passando da hostilidade à franca simpatia. Lábia de político não é sopa. Marcante, o filme, feito em condições adversas, consegue uma qualidade de imagem até hoje impressionante. A qualidade de captar imagens que, 50 anos depois, nos seduzem.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 09 de julho de 2006)