Canto do Inácio

Thursday, August 30, 2007

SEM PLÁGIO, "DÁLIA NEGRA" SAÚDA FILME NOIR
INÁCIO ARAUJO

Que vivemos em um mundo de aparências, sabe-se. Que o cinema toma parte ativa nesse mundo, também. Mas o que são precisamente aparências? E o que então é real ou verdadeiro?

Essas são indagações lançadas pelos filmes de Brian De Palma, e é em função delas que suas referências ao cinema clássico não se confundem com a atividade leviana do plagiário.

Trata-se, sim, de observar nos clássicos -em especial Hitchcock- a maneira calma como a imagem e a verdade se entrelaçavam para formar uma só coisa. A isso, De Palma contrapõe o tumulto do moderno, a dificuldade de, entre coisa representada e representação, achar-se uma adequação, algo que se chame de verdade.

Em "Dália Negra", isso afeta a protagonista, Kay (Scarlett Johansson), criada à semelhança da Lana Turner de "O Destino Bate à Sua Porta". Portanto, De Palma não somente nos remete ao filme noir dos anos 40, como o evoca diretamente, o traz para o interior do novo filme.

Com isso, criam-se dois significados. O primeiro, afirmativo, põe a semelhança entre as atrizes como caução de verdade: se acreditávamos em Lana, devemos acreditar na réplica.

O segundo é dubitativo: por que deveríamos crer nessa réplica? Essa semelhança não serviria apenas para manifestar a distância entre "aquele mundo" e o presente? As questões que De Palma lança são centrais no cinema contemporâneo, assim como seus filmes.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de agosto de 2007)

Sunday, August 26, 2007

PROFECIA DE ABEL FERRARA ENCONTRA DÚVIDA, NEGAÇÃO E DESESPERO NA FÉ

INÁCIO ARAUJO

Dentro de "Maria", há vários filmes. O primeiro deles é sobre Maria Madalena (Juliette Binoche), suas relações com o Cristo e, secundariamente, os demais discípulos. O segundo é sobre a atriz Marie Palesi, que interpreta Maria Madalena e que, terminada a filmagem, não consegue separar-se do seu personagem e passa a viver em Jerusalém, à procura de Cristo, ou de si mesma, ou de ambos.

Existe ainda um terceiro filme, que diz respeito à mídia. Ele é representado por um programa de TV onde Ted Younger (Forrest Whitaker), arguto entrevistador, conversa com personalidades sobre vida, morte e santidade de Cristo. Trata-se, nos vários filmes e níveis propostos, de observar a morte e a ressurreição de Cristo (isto é, os sinais de sua santidade), suas repercussões e decorrências, não apenas sobre as civilizações e crenças envolvidas, mas sobre cada um em particular.

É preciso dizer, desde logo, que cada filme feito sobre Jesus Cristo é uma reinterpretação de sua existência terrena. As mais recentes foram polêmicas. Martin Scorsese fixou-se nos tormentos existenciais de um Deus terreno, capaz de ser tentado não mais pelo demônio, mas por ser a divindade tornada carne. Mel Gibson, com mais simplicidade, observou os suplícios físicos que vitimaram Jesus, como se buscasse demonstrar a indignidade do homem, sua incapacidade para reconhecer o Deus encarnado.

Se Gibson está mais preocupado em partilhar sua culpa pelo destino de Cristo, Abel Ferrara ocupa-se em partilhar o próprio desespero, que diz respeito à religião, mas não só a ela. A passagem de Cristo pela Terra é um mistério, pois trata-se de um Deus feito homem. De um homem que representa Deus ao mesmo tempo em que é também Deus.

Ora, os atores são, em certa medida, isso. Não são deuses, claro, mas representam outras pessoas, encarnam personagens. No caso de Marie Palesi, o mistério se instaura: ela não consegue mais abandonar seu personagem. Da mesma forma, diretores de cinema buscam a verdade dos personagens que imaginam. Alguns o fazem desesperadamente. Ted Younger, o apresentador, a horas tantas fará a Tony (Matthew Modine), o diretor do filme dentro do filme (e que também interpreta Jesus), a pergunta fatal: "Você já foi crucificado?". Sim, porque para Younger não se toca em certos assuntos gratuitamente.

Por aí já se vê, se não aonde Abel Ferrara quer chegar, ao menos de onde ele parte: a fé não é uma coisa dada, evidente. Sua experiência convive com a dúvida, a negação e o desespero. Essa pode até não ser a fé da maior parte dos homens, inclusive porque as igrejas costumam censurar a dúvida (que dirá a negação e o desespero).

Mas é a de Abel Ferrara. No tempo da Inquisição, talvez fosse queimado. Estamos, por sorte, longe disso. Ferrara pode, em todo caso, professar sua fé desesperada na possibilidade de encontrar uma imagem que corresponda à perfeição e preencha em todos os detalhes a verdade daquilo (ou daquele) que busca representar. A fé em Deus e a fé na imagem são, afinal, a mesma.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de abril de 2007)

Friday, August 24, 2007

OLHAR SOBRE VAN GOGH
INÁCIO ARAUJO

O título "Van Gogh - Vida e Obra de um Gênio" não deixa muita margem de dúvida quanto ao assunto desse filme de Maurice Pialat.

Na verdade, Pialat preocupa-se tanto em reconstituir a trajetória do pintor holandês -sobretudo seu relacionamento com Theo, seu irmão - quanto em reencontrar a luz, os tons, as intensidades dos quadros de Van Gogh.

Sua "démarche" é discreta - às vezes até demais -, como se tentasse se ocultar atrás de seu objeto. Há ocasiões em que o próprio filme acaba se apagando. Não aqui: Van Gogh parece transferir seu brilho ao filme. Brilho que convive com a dúvida martirizante do artista sobre o valor de sua arte (martírio que Pialat parece compartilhar).

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de fevereiro de 1999)

Friday, August 17, 2007

CONPRESP
INÁCIO ARAUJO

Para quem não sabe, a sigla acima designa o conselho do patrimônio histórico municipal de São Paulo, que é o principal órgão de preservação por aqui, inclusive porque o Condephaat não faz mais ou menos nada há um tempão.

Bem, os vereadores da cidade estão tentando emplacar um projeto que aumenta o número de conselheiros de 9 para 14. Essas cinco cadeiras a mais iriam para... os vereadores de S.Paulo.

Eles ficariam com seis representantes sobre 14. Assim, se eles decidirem em bloco não comparecer a uma reunião do conselho, não haverá quorum.

Segunda parte do projeto:
Eles pretendem reduzir para 180 dias o prazo para estudo e resolução de tombamento.
Caso o imóvel não seja tombado nesse tempo, o proprietário pode derrubá-lo à vontade.

Isso é o que eu li na Folha há alguns dias.

Se for verdade, o teor de irresponsabilidade e de abertura para toda espécie de arranjos escusos é assustador, sobretudo vindo de uma Câmara de Vereadores que tem em seu passado recente uma série de escândalos.

Órgãos como Conpresp sofrem muita pressão. Daí a presença de vários representantes da dita sociedade civil, a heterogeneidade de sua composição, etc. Ora, um projeto dessa natureza eu não digo que vai arruinar visualmente a cidade, que já é bem arruinada, mas vai colaborar para que, ainda mais, ela se torne desfigurável, para que exclua a memória e a torne muito mais árida, menos habitável e, o que vem junto, mais sujeita a negócios escusos.

DAVID LYNCH
INÁCIO ARAUJO

O Alessandro lançou uma bela provocação.

Porque é verdade que nunca me liguei nos filmes do David Lynch. Não me encantei com Homem Elefante, detestei Duna, achei Veludo Azul um tanto enjoado e assim por diante.

Me parecia que eram filmes um tanto feios - pela combinação de cores, pela evolução, pelas pessoas. É um pouco como se fossem quadros do Francis Bacon.

E sempre fiquei um tanto inquieto com o artificialismo que existe nos filmes. E com um lado que parece sempre estar cotejando o momento, a moda, a modernidade.

Bem: quando veio o Estrada Perdida eu fiquei boquiaberto.

Não sei se ele evoluiu (acho que sim) ou eu. O fato é que Estrada criou uma coisa diferente, que era um labirinto, essa desmontagem dos personagens, que de repente se duplicavam etc.

E depois veio Straight Story, História Real, se não me engano, que era o mesmo labirinto, mas em linha reta.

E finalmente aquele, estranhíssimo, "Cidade dos Sonhos".

Eu fiquei ligado, mas não conseguia distinguir o sentido. Fiquei, como todo mundo, procurando simetrias que não existem. Percebi que existia uma outra lógica aí dentro, de sonho, mas não sabia como ela se dispunha. Foi um texto do Vladimir Safatle, professor de filosofia que pegou o coração do enigma (mas não o eliminou).

Então, meu ponto de vista sobre o Lynch mudou mesmo. Revi alguma coisa anterior dele e me parece que ele também conseguiu chegar, nos últimos filmes, a uma forma mais dominada, mais madura. De todo modo, gosto mais de Veludo Azul hoje do que no passado.

Se é o melhor ou maior cineasta vivo?

Isso não vem ao caso. Falei o nome dele como poderiam ter sido dez outros. Acho que é um cineasta ainda por decifrar, que tem algo de muito especial a dizer, muito inovador. Como o Kiarostami, o DePalma, o Cronenberg e vários outros. Mas, para mim, mais recente um pouco.

Wednesday, August 15, 2007

CINEMA DE ZURLINI TRAZ A BELEZA DOS VENCIDOS
INÁCIO ARAUJO

Mal dá para acreditar, hoje, que Claudia Cardinale tenha sido uma das mulheres mais admiradas do mundo por sua beleza. Quem a vir em "A Moça com a Valise" pode se surpreender com essas formas arredondadas que poderiam passar, hoje, por pecado capital.

Claudia foi uma das últimas estrelas cheinhas com direito a virar "sex symbol". Logo depois entrariam em cena as Veruschkas e outras modelos, colocando suas ossadas em evidência. Jean Renoir é um que havia de odiar a era das modelos. Ele achava mulher magra uma coisa triste.

Fim da digressão: não estamos com Renoir, e sim com Zurlini. São sensibilidades diferentes. Renoir era capaz de extrair alegria de qualquer coisa. Sabia localizar a vitalidade até na mais soturna tragédia. Zurlini, ao contrário, parecia perseguir a tristeza. E "A Moça com a Valise" (1961) é um filme sobre pessoas tristes.

Existe, é claro, Aida (Claudia), a moça da maleta, de quem o rico Marcello pretende se aproveitar. E existe Lorenzo (Jacques Perrin), o irmão adolescente, belo e triste, encarregado de livrar-se de Aida, quando ela se torna um aborrecimento para Marcello. Ocorre que as sensibilidades de Aida e Lorenzo sintonizam, os dois começam a desenvolver um diálogo. Algo de humano se manifesta.

Então ocorre o que há de mais fantástico no filme. Se alguém quiser contestar o arredondado de Claudia, que o faça. Sua beleza continuará inegável. O mesmo se pode dizer de Jacques Perrin. Mas a beleza desses dois seres, nas mãos de Zurlini, e à medida que o filme se desenvolve, se espiritualiza. Pensamos: foram feitos um para o outro. Um pode tirar o outro da situação de tristeza em que se encontra, a tal ponto suas almas parecem sintonizadas.

Eles são dois vencidos. Eis aí outra coisa que nosso tempo abomina. Queremos apenas vencedores. Mas Zurlini sabe que a poesia pode estar na derrota, assim como nas formas arredondadas.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 15 de maio de 2006)

Monday, August 13, 2007

DANIEL FILHO
INÁCIO ARAUJO

Bem interessante a recente entrevista de Daniel Filho à Folha.

Ele fala do cinema como homem de TV, isto é, o valor que reconhece num filme é seu valor de mercado.

A questão é a seguinte: o cinema brasileiro, em seu conjunto, estará pensando as coisas de outra maneira? Me parece que a maioria trabalha dentro dessa perspectiva, e nem sei se dá para ser muito diferente, seja pelas pressões que o cinema sofre ("dinheiro público dado a vagabundos" etc.), seja porque essa mentalidade está devidamente internalizada pelas pessoas.

Se essa é a perspectiva, então que se ouça o Daniel Filho e a Globo, que são quem melhor entende do assunto.

De todo modo, eu gostaria de saber se, com seus 3,5 milhões de espectadores, o "Se Eu Fosse Você" conseguiu se pagar ou lucrar. E lucrar quanto? É o bastante para reinvestir ou vamos continuar dependendo de leis de incentivo, mesmo quando o filme acerta em cheio comercialmente? O filme foi exportado?

Enfim, há uma série de questões a fazer, ainda. Não se trata de desqualificar o ponto de vista dele, mas de observá-lo com cuidado. É claro que alguém que lida com audiência de maneira cerrada, há tanto tempo, entende disso e deve ser ouvido.

Ao mesmo tempo, me parece claro que não pode ser a única opinião (para a Globo pode ser).
A opinião dele, para quem os "filmes de vanguarda" são sempre iguais pode perfeitamente ser revertida para ele: os filmes comerciais são sempre iguais e eu já vi pilhas de "Seu Eu Fosse Você".

De certa forma, o espectador quer ver sempre a mesma coisa. Então, o ponto de vista dele anula a si próprio: não faz diferença se o filme de vanguarda se repete sempre (o que é a opinião dele, repito).

No fundo, esse é um ponto de vista com dor de cotovelo, nada mais.

Friday, August 10, 2007

CINECLUBE EQUIPE
INÁCIO ARAUJO

Quem for ou estiver em S. Paulo: vale a pena conhecer o Cineclube Equipe.

Mesmo quando se conhecem os filmes, os debates são no muito legais, o lugar é simpático.

Sei de poucos colégios que hoje têm esse tipo de prática (a Escola da Vila tem também).

Abaixo, as fichas completas, de filmes e debatedores.

Acho que ficou faltando o endereço, mas deve ter no site.

Em todo caso, fica bem perto daquele viaduto que dá acesso à av. Rebouças, vindo da Cidade Universitária ou Butantã.

É atrás do Jóquei e bem perto daquela Tok & Stock, que é aquela loja de móveis bonitos, caros e pouquíssimo resistentes.

...

O Cineclube Equipe do Instituto Equipe Cultura e Cidadania, após intervalo de férias, tem o prazer de convidar a todos para a primeira sessão do semestre, Neo-Realismo Italiano, no sábado, dia 18 de agosto de 2007, no auditório do Colégio Equipe. Na sessão, além da exibição de Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica, e de debate com participação de Mauricio Hirata e Ilana Feldman, serão disponibilizados livros para consulta e murais informativos sobre o tema. Ao final, sorteio de livro.

Maurício Hirata desenvolve trabalhos em cinema/audiovisual, fotografia e design gráfico. É autor da dissertação A imagem Digital e o Cinema de Ficção Contemporâneo: duas possibilidades estéticas a partir do Dogma 95 pela ECA/USP e, atualmente, é Coordenador Executivo do Programa DOCTV.

Ilana Feldman é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Imagem da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolveu a pesquisa Paradoxos do visível: reality shows, estética e biopolítica. É redatora da revista eletrônica Cinética (http://www.revistacinetica.com.br ) e colaboradora da Trópico ( http://p.php.uol.com.br/tropico).

Mais cedo, no mesmo dia, às 11h, o Cineclubinho Equipe exibirá Os Muppets conquistam Nova York (1984) de Frank Oz. Após a projeção, será realizado sorteio de livro e oficina de fantoches de meia. Haverá estoque de meias, mas pedimos aos pais que puderem que levem meias antigas de casa. (Ingresso: R$2,00)

Em 2007, o Cineclube apresenta o Panorama Estórias do Cinema, uma tentativa de reconstruir e redescobrir nosso olhar para as imagens em movimento. Adotamos a linha cronológica como guia para (re) vermos o antigo como se fosse a primeira vez, buscando, sempre, compreender a nós mesmos e a nossa sociedade. Estórias, porque não são todas, são algumas das que nos interessam, entendidas em seus contextos específicos. Não pretendemos esgotar nenhum tema. Queremos, sim, abrir mais janelas para que as discussões se estendam para fora de nosso espaço e sejamos capazes de criar novas relações, talvez escondidas atrás do que parece já conhecido e acabado.


13h30 - Murais e livros informativos sobre o tema da sessão a disposição para leitura, exposição de fotografias produzidas pelo grupo do Cineclube a partir do estudo do movimento neo-realista, venda de bottoms e bombonière, ao som de bandas de alunos do Colégio Equipe no hall de entrada;
16h - Exibição de Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica;
17h50 - Intervalo;
17h50 - Debate com Maurício Hirata e Ilana Feldman, seguido de sorteio de livro.
O valor do ingresso é de R$4,00.

A programação do Panorama Estórias do Cinema continua em setembro com a Nouvelle Vague.

Para mais informações, visite o nosso site: http://www.cineclubeequipe.blogger.com.br
Núcleo de Cultura do Instituto Equipe Cultura e Cidadania

Thursday, August 09, 2007

ANTONIONI CRIOU CINEMA DE INCERTEZAS
INÁCIO ARAUJO

Roberto Rossellini fundou a moderna escola italiana sobre a crença de que o cinema é a arte capacitada a captar a realidade. Foi esse o princípio do que se chamou neo-realismo.

Quando se perguntou certa vez a Michelangelo Antonioni se ele negava os princípios neo-realistas, ele disse que não, que fazia um "neo-realismo sem bicicleta" (alusão a "Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio de Sica). Em outras palavras, se Rossellini acreditava no poder da câmera de fixar a realidade, coube a Antonioni introduzir uma nova questão: o que é a realidade?

Com Antonioni, a partir daí, o cinema desloca-se decisivamente da esfera da ação -que Rossellini já havia rarefeito- para a do tempo. O tempo substitui francamente a ação: ele é aquilo que faz e desfaz as coisas.

Com isso, inicia-se também uma busca desse real, e talvez seja ela que tenha feito de Antonioni um mestre das distâncias, aquele que mais se preocupou em captar não as pessoas, mas o ar que existe entre elas. Quem mais poderia filmar aquela cena de "A Noite" (1961) em que Jeanne Moreau, andando sozinha pela cidade, depara com fogos de artifício? Imediatamente ela chama seu amante, Marcello Mastroianni. Ele vai até o local, só para constatar que já não há fogos.

Em "O Eclipse" (1962), a Bolsa de Valores cessa a atividade por um minuto em homenagem a um corretor que havia morrido. Durante um minuto não se escuta nada. Quando soa a sineta anunciando o final, volta o ruído infernal do pregão.A cada filme, o cineasta parece perguntar-se o que é real, imaginário ou alucinação. Diante das calamidades do pós-guerra, Rossellini se perguntava "por que isso acontece?". Antonioni, mais novo, olhava esse mesmo mundo (ou quase o mesmo: já é uma Itália recuperada da guerra) e sua questão era: "o que, afinal, acontece?"

Para Rossellini, católico, a baliza desse mundo, por terrível que fosse, era Deus. Para Antonioni, materialista, Deus estava morto. O homem, portanto, está livre. Mas a que leva a liberdade? À crise. Antonioni filmou, quase sempre, crises, momentos de passagem (inclusive passagem da vida à morte, uma constante nada gratuita).

Depois de sua célebre trilogia, Antonioni acrescentou as cores a seu vasto repertório de imagens, em "O Deserto Vermelho" (1964) -lançado no Brasil como "O Dilema de uma Vida"-, antes de partir para o exterior, Inglaterra, onde Vanessa Redgrave tomou o lugar de sua ex-mulher Monica Vitti como estrela em "Blow Up" ("Depois Daquele Beijo", 1966).

A Inglaterra de Beatles e Rolling Stones talvez lhe parecesse o lugar ideal para dar seqüência às idéias de outro mestre, Alfred Hitchcock, que em "Janela Indiscreta" mostrara como é delicada a linha que separa a realidade da imaginação.

O fotógrafo de "Blow Up", ao contrário do de "Janela Indiscreta", capta a realidade com sua câmera. Ele passa da fabulação à materialidade: tem provas do assassinato que captou. Ou será que o crime teria sido apenas uma idéia construída pela montagem de imagens?

Se as dúvidas a respeito do real prosseguiram nas décadas seguintes, com "Profissão: Repórter" (1975) ou "Identificação de uma Mulher" (1982), até seu último filme Michelangelo Antonioni tratava de uma arte capaz de se aproximar como nenhuma outra das coisas, das pessoas, do tempo, mas que quanto mais chega perto, menos nítida se torna, mais instaura a incerteza. Com Antonioni, já não existem certezas.

O homem, que mesmo em Rossellini ainda é senhor do espaço, agora tateia um mundo que não domina, onde o sentido já não está dado, onde é preciso buscar, sem saber ao menos o que buscar. A crise do homem moderno passa por esse cinema moderno, do qual Antonioni foi um dos grandes mestres.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 01 de agosto de 2007)

Wednesday, August 08, 2007

BERGMAN
INÁCIO ARAUJO

As atrizes são um caso à parte no mundo de Bergman. A Liv Ullman, certamente.

Mas, e Harriet Andersson?

Era gordinha e iluminada. Bergman diz que toda a equipe, não apenas ele, mas toda a equipe se apaixonou por ela. Eva Dahlbeck me parece menos marcante.

E Ingrid Thulin e Bibi Anderson, de "Morangos Silvestres"?

E Gunnel Lindblom? Por essa eu me apaixonei quando assisti "Persona", ou terá sido "O Silêncio"?

Alguém, teria sido o André Settaro?, escreveu que essa geração de diretores nos ensinou que o cinema podia ser uma arte, e não apenas uma diversão, o que é verdade.

Eles nos ensinaram isso, embora o cinema já fosse, sem que tivéssemos notado, essa arte. Mas eu comecei a admirar o cinema por eles.

Bergman tinha o dom de fotografar rostos, mais que rostos, os poros dos rostos, suas saliências, a beleza deles era sempre difícil, tortuosa.

Às vezes me parecia meio enfadonho. Parei de ver seus filmes a horas tantas. Daí, numa Mostra, peguei só o final do Sarabanda e, caramba, há um mundo de diferença quando ele ou um Antonioni filma.

Tuesday, August 07, 2007

BERGMAN FILMAVA ALMA DE PERSONAGENS
INÁCIO ARAUJO

A morte que ontem chegou para Ingmar Bergman acompanhou-o por toda a obra como uma de suas obsessões recorrentes. Tem presença até mesmo física em "O Sétimo Selo" (1957), um de seus filmes mais célebres, onde um homem disputa com ela uma partida de xadrez (não é difícil imaginar o resultado).

A morte não era, no entanto, figura isolada em suas preocupações. Era parte de um mundo em que o homem é atirado por Deus para viver a aventura de ser único, uma solidão apenas mitigada, nos bons momentos, ao menos, por essa instituição periclitante que é o amor.

Em obra iniciada no pós-guerra e ao longo da qual realizou cerca de 60 filmes, entre produções para cinema e TV (sem falar do teatro), Bergman quase sempre indagou-se a respeito de Deus, deste Deus austero e silencioso que deixou os homens à própria sorte, o Deus cultuado pelo protestantismo dos países nórdicos, e em particular por seu pai, um pastor.

Bergman foi, no cinema moderno, o grande continuador da escola nórdica, de diretores como Carl Th. Dreyer, dinamarquês, ou Victor Sjostrom, sueco como Bergman e que pode ser visto como ator em "Morangos Silvestres" (1957), grande momento da produção bergmaniana, em que um velho senhor, no ocaso da vida, pergunta-se sobre o que foi sua existência.

Se as questões, ora metafísicas, ora existenciais, pululam no cinema de Bergman, não é correto dizer que era um cinema exclusivamente da angústia. Assim como podia pensar na morte de forma obsessiva, era capaz de produzir um dos mais belos e vitais filmes sobre a juventude, como "Monika e o Desejo" (1952), que o fez descobrir mundialmente no Festival de Cannes e, então, ser reconhecido como um dos grandes cineastas de seu tempo, ou enveredar pela política, como em "O Ovo da Serpente" (1979).

Imagens únicas

Bergman foi menos original na temática do que na abordagem de seus temas. Sabia como ninguém filmar um primeiro plano. Aproximava a câmera de atores e atrizes e extraía imagens únicas, que não por acaso promoveram ao estrelato uma longa lista deles, de Harriet Anderson a Liv Ullman, passando por Ingrid Thulin, Bibi Anderson, Gunnel Lindblom - para ficar em algumas do lado feminino -, que contracenaram com Max von Sydow ou Erland Josephson, do masculino.

Talvez Bergman tenha sido mesmo "o cineasta do instante", como definiu Godard em 1958: era o pensamento que ocorria mesmo que longinquamente a um determinado rosto que sua câmera levava ao espectador. Não penetrava na psiquê dos personagens. Penetrava na alma, de certa forma, mas sabia que só poderia fazê-lo por meio de seus corpos.

Qual o melhor Bergman? Haverá quem prefira o do início, o de, por exemplo, "Noites de Circo" (1953), que o fez descobrir no Brasil (sim, Walter Hugo Khouri era grande fã desse filme notável), o dos anos 60, de "Persona" (que no Brasil recebeu o nome infame de "Quando Duas Mulheres Pecam"), ou aquele já desiludido de Deus que se insinua nos anos 70 em, digamos, "Gritos e Sussurros".

Bergman por vezes cansava, é verdade, já que seus filmes, feitos um atrás do outro pareciam por vezes repetir-se. Bastava dar-lhe uns anos de folga, no entanto, para que voltasse original. Como em seu último trabalho, "Saraband", nunca exibido comercialmente entre nós, o que é apenas uma vergonha a mais de nosso sistema distribuidor. Bergman foi um dos grandes do cinema moderno: ver seu trabalho, uma última vez, é um direito que devia ser dado a todo espectador.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 31 de julho de 2007)

Monday, August 06, 2007

LARANJA MECÂNICA
INÁCIO ARAUJO

Também na TV, um programa inglês.

Uma gordinha vai a uma médica, uma oriental despachada, e constata que deve emagrecer e parar de fumar.

Um personal trainer prova por A + B que a gordinha tem que emagrecer e fazer exercícios.

Ela fica feliz depois de um mês: perdeu uns quatro quilos.

Mas vai fazer aniversário e quer comemorar. Quer tomar seis doses de vodka. A doutora japonesa diz que mulher só pode tomar duas. Mas a garota insiste que quer tomar seis. Então a doutora manda ela ver o trabalho da polícia que recolhe os bêbados no fim de noite.

E a gordinha se converte. Percebe que não pode beber tanto.

O Kubrick filmou há uns 35 anos essa história, a da conversão do cara demoníaco por uma lavagem cerebral.

Era uma crítica.

Agora, não há mais crítica alguma. A lavagem cerebral está aí a toda hora, minuto a minuto, dizendo o que devemos ser e por que.

A dra. Hitler nipônica mais a gordinha e seu personal trainer, ao mesmo tempo em que encenam a lavagem cerebral a estão praticando (em nós).

Caramba, a ficção científica, nesse particular, acertou em cheio. Desgraçadamente em cheio.

Thursday, August 02, 2007

DE PALMA/LYNCH
INÁCIO ARAUJO

Trecho de um texto de Vladimir Safatle. Me parece que o que diz a respeito de Lynch se aplica, em outra escala, a “Dália Negra”: dos clichês, da gramática vazia, buscar extrair instabilidades, a possibilidade de novos significados, novas formas. O trabalho do De Palma sempre foi nessa direção: reescrever o escrito, redizer o dito, encontrar novos sentidos. Desta vez, em Dália Negra, o mundo parece apenas mais vazio, mais desprovido de verdades que, no passado, nos satisfaziam, mas que hoje se mostram descarnadas, sem verdade à força de serem usadas e reusadas.

“Lynch nos oferece uma via de sublimação ao se servir de um dos dispositivos maiores da arte contemporânea, cujo eixo de desenvolvimento está exatamente em forçar suas margens ao introduzir instabilidade naquilo que, de tão visto, parecia não poder significar mais nada. O que era muito familiar deve se transformar em estranho. Um procedimento que Lynch já havia levado ao extremo em Twin Peaks com sua história da pequena cidade pacata e idílica que, aos poucos, vai se dissolvendo em uma rede de conflitos obscuros e interferências sobrenaturais. Ao saber instaurar conflito na utilização de formas gastas da história do cinema e de uma gramática vazia, Lynch é capaz de filmar com ruínas.”

Wednesday, August 01, 2007

JOGOS PATRIÓTICOS
INÁCIO ARAUJO

Me pareceu deplorável a cobertura do Pan.

Poderia ser apenas ridícula, e já estava muito bom.

Mas por que esse patriotismo sem pé nem cabeça?

O que significa isso?

Para que fazer Jogos Pan-Americanos se todos os demais países apenas estavam lá como cenários desse grande, magnífico, imbatível homem brasileiro.

Na qualidade de anfitriões, nossos locutores poderiam ao menos manifestar um tanto de cortesia em relação aos demais países.

Mas parece que a TV quer fazer uma lavagem cerebral de fazer inveja.