Canto do Inácio

Saturday, December 27, 2008

ATMOSFERA REALISTA CONDUZ AO SOBRENATURAL E O TORNA CRÍVEL
INÁCIO ARAUJO


Não faltam motivos para que "A Noite dos Mortos-Vivos" (versão original, de 1969) tenha se tornado um marco na história do filme de terror.

O primeiro deles é a sua originalidade. Em várias frentes. Em primeiro lugar, o realismo cru da direção de George Romero introduz um novo parâmetro no gênero, normalmente dominado seja pelo gótico, seja pelo barroco.

O que há de mais terrível em "A Noite dos Mortos-Vivos" é que os personagens nos sejam tão familiares: um rapaz e uma moça vão colocar flores no túmulo do pai, quando são atacados por um morto-vivo. Ele morre. Ela consegue chegar a uma casa que será refúgio de vários vivos, ao longo de uma noite interminável.

Em segundo lugar, esses mortos-vivos estão longe de ser emanações infernais: é a radiação (um terror bem humano) que os tira dos túmulos e os transforma em monstros mutantes. É, portanto, o homem que gera, com sua ação, seu próprio terror.

Nem por isso ele é menor: cada minuto é de tensão, em que o melhor do gênero vem à tona, isto é: essa capacidade que só o fantástico tem de despertar nossos fantasmas mais profundos - o medo da morte, da mutação.

Em nenhum momento Romero cede à facilidade do cinema-susto, tão frequente no horror mais recente. Não há necessidade de aparições rocambolescas para gelar nosso sangue. É a atmosfera realista (parece um filme de John Cassavetes, nesse sentido) que nos conduz ao sobrenatural e o torna mais crível e aterrorizante.

Por fim, o fato de trabalhar com atores desconhecidos introduz um elemento a mais de horror. Um ator famoso nos tranquiliza e dá a certeza de que o herói sobreviverá para contar a história, o que não acontece aqui. O filme dispõe de uma produção modesta, mas não se ressente desse fato. Pelo contrário, tira partido dela. É indispensável para os fãs do gênero e também para os que não são tão fãs assim.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 28 de março de 2001)

Monday, December 22, 2008

"É ASSIM QUE FUNCIONA"
INÁCIO ARAUJO

A frase acima está em “Gomorra”, dita por um dos personagens, cujo nome não lembro agora. Se houvesse síntese possível, sintetizaria este filme tirado de um livro que ainda não li, mas quero ler com urgência e é de natureza, aparentemente, diversa.

O filme narra uma série de episódios, mas tem o cuidado de não uni-los, de não compor “uma história”. Não há nem coerência dos negócios, que podem ir de lixo tóxico a drogas ou armas, passando pela alta costura. Não percebemos uma máfia, mas várias, infinitas, que se movem mais ou menos legalmente, mais ou menos consentidamente.

Pelo que entendo, o filme de Matteo Garrone abre um espaço para a ambigüidade que não está presente no livro. Isso é interessante: é um filme ficcional sobre um material jornalístico. Não perde nada de verdade com isso: produz uma nova dimensão, que é a da imagem.

Pois não há livro capaz de registrar aqueles mafiosos com camisetas de times de basquete, sandálias havaianas, essas coisas. Quanto ao livro, repito, estou saindo para comprar. O autor está jurado de morte pela Camorra. Devia ganhar no mínimo um Pullitzer. O filme também.

Wednesday, December 17, 2008

MICHEL GONDRY
INÁCIO ARAUJO


De tempos em tempos, a indústria cultural cria um mito de absorção fácil que, no entanto, a justifique intelectualmente. Se for francês, melhor. Michel Gondry é o mito presente. A menos que eu não tenha compreendido suas profundezas insondáveis, “Rebobine, por Favor” é um filme banal. Aliás, é um filme sacal, em que personagens razoavelmente tolos são filmados tolamente (ou seja, como se eles não fossem tolos).

A idéia de refilmagens pessoais de filmes profissionais pode até ser vista como uma interferência do espectador nos filmões. E daí. Isso configura um fenômeno social, mas não estético. Diz respeito à evolução da tecnologia e até à vontade ou necessidade das pessoas de criar imagens. Tudo muito bom.

Mas, no caso, vejo “Rebobine” antes de tudo como uma ocasião em que a indústria cultural glorifica a indústria cultural por fingir-se outra coisa.

E, pelo amor de Deus, “O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” é um melaço insuportável.

Tuesday, December 16, 2008

BIENAL POLICIAL
INÁCIO ARAUJO

Nenhuma surpresa, a coluna do Jorge Coli na Folha de domingo (Mais!) dá conta da Bienal do Vazio, isto é: dessa tentativa vã de discutir o estado das artes e seus limites, o que resultou na verdade foi a prisão de uma menina que pichou o prédio logo na inauguração.

Nada que uma ou duas mãos de tinta não resolvessem. Nada que se pareça com destruição do patrimônio artístico, nada que se compare ao que tem sido feito pela própria Bienal, ao renunciar a existir na atual edição.

No entanto, a garota está presa há mais de 50 dias. Do que se pode dizer que a única coisa aproveitável da Bienal de 2008 é, aparentemente, este escândalo colossal. Já para não dizer vergonha nacional.

A Justiça tem os olhos bem abertos e toda presteza em libertar acusados de coisas um milhão de vezes mais graves, mas os mantém fechados quando se trata de dar um jeito na história da menina. Que não foi libertada, dizem, porque não conseguiu comprovar residência. Desculpa pra boi dormir, evidentemente.

Sunday, December 14, 2008

PHILIPPE GARREL FAZ REENCONTRO COM O FANTÁSTICO DO CINEMA CLÁSSICO FRANCÊS
INÁCIO ARAUJO


Com nome de filme de guerra, "A Fronteira da Alvorada" promete ser mais um filme de guerra do que outra coisa. Mas não é bem isso. A expressão a reter, no caso, é fronteira: aquilo que aproxima e separa a noite do dia, a realidade da imaginação.

Philippe Garrel tem uma maneira às vezes estranha de promover esse tipo de aproximação. Em "Os Amantes Constantes", ele retomava 1968 como se buscasse não uma representação de eventos, mas entrar em 68. Em "Fronteira", há dois tempos representados pelas mulheres na vida do belo fotógrafo François (Louis Garrel): Carole (Laura Smet), a tempestuosa atriz de cinema por quem ele se apaixona, e a plácida Eve (Clémetine Poidatz), mais ou menos o negativo de Carole.

À sucessão das mulheres corresponde a outro desenvolvimento na linha do tempo: o filme, em branco-e-preto, reencontra o fantástico do cinema clássico francês. Mas Garrel não é um imitador nem propriamente um nostálgico. Seu trabalho com os ritmos é muito particular, embora não apaixonante: ele pode deter-se calorosamente na natureza das relações entre François e Carole para em seguida, de maneira quase repentina, notar o deslocamento do afeto do rapaz. Durante uma das ausências de Carole, é que Eve aparece.

Daí à ruptura é um passo. O que parecia um filme sobre Carole, desloca-se de repente. Pouco depois começamos a ver François às voltas com um novo e bem diferente amor.

Tempo interrompido

No entanto, é nesse instante que Garrel parece questionar a sucessão temporal. É como se, para ele, um amor não sucedesse a outro. E um evento que viesse depois do outro não tivesse o direito de relegar o anterior ao passado. É como se o amor de Carole, reivindicando seus direitos, retornasse na forma de pesadelo: o de um tempo que não passa, interrompido.

Como isso acontece não é possível dizer: é, de certa forma, o que faz o encanto de um filme que vive antes de mais nada de seu encanto e da precisão da mise-en-scène, que podem eventualmente gerar uma obra-prima como "Amantes Constantes".

"A Fronteira da Alvorada" fica um pouco abaixo, embora repita a notável fotografia de William Lubitchanksky. Com toda sua beleza, este filme não nos faz esquecer de que quase todo o cinema francês (excluídos os cineastas de origem árabe) debate-se num mundo que parece esgotado, fechado a questões urgentes por falta de questões urgentes. Mas isso já é outra história.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 05 de dezembro de 2008)

Wednesday, December 10, 2008

VIVA PERNAMBUCO
INÁCIO ARAUJO

Como sempre com os bons filmes nacionais, fui ver Deserto Feliz e dava para contar os espectadores nos dedos. De duas mãos, ok, mas era num sábado à noite...

O filme de Paulo Caldas é mais uma demonstração de que o cinema de Pernambuco é muito mais interessante do que o que se está fazendo no resto do país.

Não é um filme perfeito, claro, mas tem tudo aquilo que dizem ver em O Céu de Suely e não consigo ver.

Sobretudo, me parece que observar a prostituição infantil sem designar vilões (estrangeiros, em particular), mas olhando as coisas, apenas, me parece que permite um mergulho mais conseqüente nessa questão.

Há pontos fortes:
1. A seqüência de caça ao tatu, logo no início;
2. A violentação da garota pelo padrasto é fantástica; o caráter animal do padrasto, idem;
3. Hermila antes, depois, sempre que aparece em cena valoriza tudo (há João Miguel também, mas aparece menos);
4. Os diálogos, muito bons;
5. Captar existência psicológica no pobre nordestino. Lembra um pouco "porto das caixas", no início.

Pontos fracos:
1. Alguns travellings um tanto perdidos;
2. Certo simbolismo (em relação ao tatu) meio óbvio;
3. Talvez exagerar um pouco nisso que está no item 5 dos "pontos fortes".

Enfim, é possível discutir sobre este filme, mas não negar de que se trata de trabalho muito inteligente e muito forte.

Sunday, December 07, 2008

ATOR TENTAVA SE IMPOR AO CAOS DO MUNDO
INÁCIO ARAUJO


Existia no tipo de Jack Lemmon um quê de racionalidade feroz que com certeza o ajudou a fazer uma cena antológica do cinema: o diálogo final de "Quanto Mais Quente, Melhor", de Billy Wilder.

Lá está Jack em trajes de mulher. E a seu lado um milionário apaixonado por "ela". Como fazer para explicar que esse amor era impossível? Qualquer um diria: "Eu sou um homem".

Não Jack Lemmon. Ele tenta demonstrar racionalmente a impossibilidade daquele amor. Até que, vencido pela paixão inabalável do parceiro, arranca a peruca e diz que não é uma mulher. Aí vem a célebre réplica: ninguém é perfeito.

O traço racional dos personagens de Jack Lemmon se manifesta aqui até o paroxismo, pois opta por se livrar do apaixonado de maneiras indiretas, como uma mulher faria: evitando ferir o amor próprio do outro.

Lemmon expressava a fragilidade da razão, sua dificuldade de se impor ao caos do mundo.

Outro momento antológico: quando mostra para Shirley MacLaine, em "Se Meu Apartamento Falasse", como coar a água do macarrão numa raquete de tênis. Jack reinventa um objeto, explora suas possibilidades, distorce-as.

É na parceria de muitos filmes com Walter Matthau que o aspecto ao mesmo tempo frágil e racional fica mais claro, pois cabe a Matthau, geralmente, representar o durão, o mais esperto, o que dribla as regras do bom senso. Fiquemos apenas com "A Primeira Página", também de Wilder. São dois jornalistas. Matthau é o diretor de redação disposto a usar todos os truques para impedir que seu melhor repórter abandone o jornalismo. Jack Lemmon é o repórter em questão, que tentará se safar sem nenhuma trapaça, procurando manter intactas as leis da lógica.

Lemmon foi um dos grandes atores de cinema do século 20. Expressou talvez mais intensamente do que qualquer outro ator o conflito, tão intenso ao longo deste século, entre as forças obscurantistas e as que buscam compreender o mundo e fazer da compreensão a base da presença humana na Terra.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de junho de 2001)

MORBIDEZ DE TRUFFAUT
INÁCIO ARAUJO


"O Quarto Verde" é um filme sobre a obsessão pela morte. Pode espantar, vindo de um cineasta habitualmente vital como François Truffaut.

Espanta um pouco mais quando sabemos que é Truffaut, com um chapéu coco, que representa o papel central, o do homem obcecado, um jornalista, nos idos da Primeira Guerra, que vivencia de maneira extremada a morte de amigos e conhecidos.

O senso de humor e a agilidade, marcas registradas de tantos momentos de Truffaut, cede aqui a uma gravidade que beira a morbidez. Truffaut não teve vida fácil. Desde a infância, muitas vezes converteu a infelicidade pessoal em felicidade filmada. Aqui Truffaut namora a morte, que o apanharia traiçoeiramente em 1983.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de fevereiro de 2004)

Tuesday, December 02, 2008

COMODORO
INÁCIO ARAUJO

Nesta quarta-feira, dia 3 de dezembro, 21h, a Sessão do Comodoro do Cinesesc (SP) apresenta:

MURMÚRIO DO RIO FUEFUKI, de Heisuke Kinoshita

A sessão é uma tradição da primeira quarta do mês no Cinesesc e sempre traz raridades, descobertas e apresentadas pelo Carlos Reichenbach.

A não perder.

Aliás, no dia 8 de dezembro, 19h30, o lançamento de:
ABC Clube Democrático
São quatro roteiros do próprio Carlão.
O lançamento será no Bar Balcão
(R. Dr. Melo Alves, 150 - São Paulo tel. 3063.6091)