Canto do Inácio

Sunday, April 27, 2008

68
INÁCIO ARAUJO

Não tem muito a ver com cinema, mas acho que merece registro. Hoje a tendência geral é a denegrir 68. Senti isso na entrevista com Zuenir Ventura, no Roda Viva. Já havia sentido em outras ocasiões, p.ex. na coluna de Elio Gaspari, quando disse que o ano decisivo foi 1989, e não 1968. Há um gosto de polêmica, ali, claro, mas são duas coisas completamente diferentes. Agora, é verdade, a queda do Muro de Berlim foi um signo mais evidente de transformação, de entrada em um novo mundo, enquanto retrospectivamente se tem a impressão de que 1968 representou, antes, a agonia de um antigo mundo. Eu só não sei se este mundo novo é melhor. No antigo, em 1968, a gente lia Marcuse e Cortazar, hoje não sei, lê-se esoterismos, livros de auto-ajuda (que eram um exotismo em 1968) ou o que a indústria cultural mandar. A gente via Godard, Antonioni, Resnais toda semana, ia atrás dos japoneses da Liberdade, havia Glauber e Rogério.

Eu sempre detestei a canonização da gente de 68, a opressão que acabou havendo sobre a geração seguinte, como se ela não tivesse razão de viver pelo simples fato de não ter existido em 68. Meu livro Casa de Meninas é, de certa forma, contra isso. Agora, vamos com calma. Quando o jornalista quase exige que Zuenir se retrate por ter feito a apologia das drogas há 40 anos atrás, vai me desculpar mas isso não é curiosidade, é burrice, é desconhecer que as coisas nunca são as mesmas. Que as drogas de 68 eram outras, seu sentido era outro.

Thursday, April 24, 2008

VERHOEVEN FAZ JOGO COM A DESCRENÇA NA NARRATIVA
INÁCIO ARAUJO


Se existe uma lição a tirar de "A Espiã" é que numa guerra nunca se sabe quem é quem. É possível levar a lógica um pouco mais além: a guerra traz à tona o que existe de mais profundo nas pessoas, da generosidade à ganância, do altruísmo ao egoísmo mais profundo, da fidelidade à traição.

Para generalizar a lição, é possível concluir, de modo muito pessimista, que, a rigor, nunca conhecemos ninguém.

Digamos que o filme de Paul Verhoeven fica, nesse nível, por aí. Mas há razões para crer que não seja esse o aspecto principal das reflexões do autor de "Robocop" de volta à Holanda.

Senão, vejamos: não será pelo menos estranho constatar que esse cineasta experiente realiza um filme em que se abre tão gentilmente aos cada vez mais numerosos caçadores de incongruências e implausibilidades? E elas pululam ao longo deste "thriller" admirável. Para citar apenas uma, logo no início do filme: não soa meio falso que uma moça judia de família rica, como Rachel/Ellis, vire cantora profissional nos anos 30?

Questões desse tipo podem ser suscitadas ao longo de toda a trama, que se organiza na Holanda, no final da guerra. Devido ao assédio dos nazistas, Rachel e família tentam fugir para a Bélgica. A balsa em que viajam é metralhada pelos alemães. Única sobrevivente, Rachel (Carice van Houten) engaja-se em um núcleo da Resistência e passa a se chamar Ellis de Vries. É feita espiã e torna-se amante do chefe do serviço secreto da SS, Ludwig Müntze (Sebastian Koch).

Toda história de espionagem - ainda mais se duplicada pela resistência - carrega um tanto de inverossímil, como Htichcock sabia muito bem. Mas a época de Hitchcock era de crença. Hoje, é de descrença. A ficção é objeto de desconfiança, como se "a vida vivida" fosse de verdade e a imaginada fosse uma mentira. Não é por acaso que tantos filmes (inclusive este) usam a caução: "baseado em fatos reais".

É esse núcleo da arte contemporânea que Verhoeven trabalhará de maneira específica aqui. As reviravoltas são tão rocambolescas que é quase impossível ao espectador não se perguntar se aquilo é possível.

Ao mesmo tempo, as cenas são tão bem construídas que logo esquecemos nossa inquietação e deixamo-nos levar por um "e por que não?".

Sim, por um lado a guerra torna tudo possível. Mas não é sobre isso que se apóia "A Espiã", e sim sobre a contemporânea descrença na narrativa.

É como se Verhoeven jogasse o espectador contra o seu próprio ceticismo: é justamente por resistir à narrativa que ele se deixará levar pelas imagens.

E, quando está embalado por elas, Verhoeven providencia uma nova reviravolta, uma nova ambigüidade no rosto dos personagens, um novo mal-estar que o retire de seu conforto (exemplos de momentos de mal-estar: quando fustiga o protestantismo holandês; quando observa o anti-semitismo infiltrado na Resistência).

É por desafiar de forma tão aberta as convenções cinematográficas que Paul Verhoeven tem sido vítima de uma verdadeira campanha de difamação a cada filme que faz, de "Showgirls" a "Tropas Estelares". "A Espiã" chega ao Brasil vítima de um título nulo ("O Livro Negro" - com mais de um sentido - seria mais fiel ao original e mais interessante). Talvez ele ajude, em sua platitude, a exorcizar alguns dos mal-entendidos que rondam a carreira desse notável autor.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 11 de janeiro de 2008)

REFINAMENTO DE WALSH PERCORRE LONGA SOBRE GUERRA
INÁCIO ARAUJO

Se "Heróis Esquecidos" trata dos soldados que, ao voltar da Primeira Guerra Mundial, não tinham lugar na sociedade, seu autor, Raoul Walsh, hoje tende a ser esquecido.

À primeira injustiça, os heróis responderam aderindo ao gangsterismo, casos, aqui, de James Cagney e Humphrey Bogart. À segunda, não se sabe muito bem como responder.

Walsh dirigia como um possesso, criando um ritmo muito particular (acelerado, quase sempre) para seus filmes, disfarçando sob a aventura e a violência seu refinamento de pioneiro (ele começou como ator e assistente de D.W. Griffith e já dominava sua arte, perfeitamente, no cinema mudo).

Walsh sabia dar vida e movimento a toda cena importante que dirigia. Essa arte clássica por excelência atualmente é pouco conhecida, um tanto oprimida sob os frufrus do pós-moderno e a seriedade do moderno. Seu equivalente atual talvez seja Brian de Palma, de "O Pagamento Final".

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 23 de abril de 2008)

Thursday, April 17, 2008

FALSA LOURA
INÁCIO ARAUJO


Me parece o melhor Carlão desde "Alma Corsária", mas entendo quem teve dificuldade de compreendê-lo. Nós nos acostumamos com um cinema óbvio, roteirístico, não cinematográfico, em suma.

De maneira que a escrita muito incisiva da "Falsa Loura" acaba soando estranha. O "cinema industrial" (ou comercial) parece que está vencendo a batalha no Brasil, em parte porque o sistema de produção vai para esse lado, em parte porque o cinema anda mesmo muito inculto.

O que me parece excepcional no filme é ser o primeiro plenamente realizado ("Garotas do ABC" era um tanto dispersivo, nesse sentido, porque tocava em muitas coisas, talvez demais) sobre o proletariado pós-marxista, ou seja: o proletariado, como comportamento, num momento em que não tem nenhuma defesa. A falsa loura é bem isso, tanto mais que é uma brava garota, uma brava personagem.

Em outros tempos, talvez fosse uma líder sindical ou algo assim. É um filme difícil e realmente impressionante.

Wednesday, April 16, 2008

ENIGMAS DE ANTONIONI REVELAM MODO DE CRIAÇÃO
INÁCIO ARAUJO

Michelangelo Antonioni é de Ferrara, na Itália. E, em Ferrara, a neblina é uma presença constante. Mais até que uma presença, um conceito. Não por acaso, é lá que se dá uma cena-chave deste filme.

Niccolo, diretor de cinema, se impacienta com a neblina e acelera o carro, para desespero da namorada, Mavi. Depois, ele pára. Mavi deixa o carro e some. Niccolo vai atrás. Um some para o outro. Por fim eles se encontram, mas o tom está dado.

É preciso dizer que em Antonioni não há tédio. Ao contrário, tudo aqui é mistério. Antes mesmo que vejamos o início do namoro de Mavi e Niccolo, um homem vem e ameaça Niccolo.

Quem é ele? A mando de quem ameaça? Eis o primeiro mistério. O segundo diz respeito a Mavi: a garota rica que se envolve com o cineasta e some.

Enquanto nos perguntamos sobre ela, acompanhamos sua relação erótica com Niccolo. Sim, porque este é, ainda, um filme de sexo, às claras, sem pudor.

As brumas da estrada como que encerram um filme para iniciar outro. E, neste, Niccolo se relaciona com uma atriz de teatro, Ida. Para que se relacionem é preciso, na verdade, que Ida o ajude na busca de Mavi.

Sim, quem disser que isso lembra Hitchcock está certo. Tão certo que, a horas tantas, "Identificação" nos contemplará com uma escadaria linda, como a de "Um Corpo que Cai".

Se as relações de Ida e Niccolo serão também balizadas por acasos que parecem irrisórios, mas se mostram absolutos, há um outro e não desprezível aspecto: Niccolo é um diretor em busca de uma história. Para tanto, precisa de um rosto. E por isso empenha-se em desvendar o enigma que cerca suas relações com Mavi: é como buscar a solução para um roteiro.

Não importa se, com Ida, novos enigmas apareçam, novos temores. Ou, por outra, importa: enquanto vemos este lindo filme, Antonioni nos mostra ao mesmo tempo o processo de sua criação. Porque para ele o enigma da vida e o enigma da arte são, a rigor, um só.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de abril de 2008)

Sunday, April 13, 2008

EM "BLOW UP, REALIDADE É SEMPRE INCERTA
INÁCIO ARAUJO


No início de "Blow Up - Depois Daquele Beijo", o fotógrafo sai de uma fábrica e tira sorrateiramente o macacão: ele o usava para se passar por operário, para que suas fotos parecessem autênticas - é o que depreendemos.

Com isso, Antonioni nos coloca de imediato diante de uma ambigüidade. Ao vermos o personagem, não sabemos que é um fotógrafo. Mas ele já é um ator - David Hemmings. O seu disfarce é duplo: ele é o ator que se faz passar pelo fotógrafo, que por sua vez se faz passar por operário. Para chegar à verdade, o artista deve se valer de artifícios, sem dúvida, mas a realidade, para Antonioni, é sempre distante. E incerta.

Incerta, como veremos a seguir: o fotógrafo capta uma cena de amor em um parque de Londres. A protagonista dessas cenas (Vanessa Redgrave) se inquieta. Por quê? Nossa suposição é imediata: trata-se de um romance clandestino. Ao revelar as fotos, no entanto, percebe que por trás da cena de amor poderia haver algo mais: uma tentativa de assassinato.

As fotos, ampliadas, perdem em nitidez. Mas seu encadeamento parece demonstrar essa hipótese. Que prova mais palpável podemos querer de um fato além de uma foto? Não existe: a foto registra o real.

Antonioni não parece estar assim tão certo de que o real se entregue a nós com tanta facilidade. Ao contrário de Roberto Rossellini, ele acredita que a realidade escapa entre nossos dedos. Assim é em "Blow Up".

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de abril de 2008)

Wednesday, April 09, 2008

VERDADES DA GUERRA
INÁCIO ARAUJO


"Agonia e Glória", de Samuel Fuller, é tudo que o recente "O Resgate do Soldado Ryan" promete ser e não é: um filme verdadeiro sobre a guerra. Isso vem menos do fato de Fuller ter sido soldado na Segunda Guerra Mundial do que às variações de tom dos dois filmes.

Em "Soldado Ryan", Spielberg jogou tudo na sequência inicial, da invasão da Normandia, e consequente carnificina. Com o tempo, a força diminui (até porque os personagens se mostram pouco sólidos).

Em "Agonia e Glória", ao contrário, o início é quase uma festa para o grupo de recrutas. É com o duro andamento das batalhas que, pouco a pouco, o mundo heróico dissipa-se e torna-se, a cada sequência, mais terrível.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 21 de novembro de 1998)

Thursday, April 03, 2008

VOANDO ALTO
INÁCIO ARAUJO

Fugindo da pobreza e do destino provinciano, garota busca escola de comissárias de bordo. Ali descobrirá que a vida real não é exatamente aquilo que sonhava, pois surgem as dificuldades, as pessoas pouco honestas, o jogo duro etc.

O que é certo? A ambição ou a falta dela? Bruno Barreto queixou-se muito da Miramax, que teria mudado completamente o projeto. A dúvida que vale para aeromoças vale para diretores de cinema.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 01 de abril de 2008)