Canto do Inácio

Monday, October 27, 2008

SIDNEY POITIER
INÁCIO ARAUJO

Não fosse por conhece Catherine Arnaud, provavelmente eu não tivesse ido ver o filme, o que não impede que "Sidney Poitier" seja uma bela surpresa.

O documentário consegue aliar três instâncias de história: pessoal, do cinema e do racismo.

Há o jovem Poitier que se impõe numa Hollywood de pós-guerra, quase sorrateiramente, mas de todo modo representando uma mudança nos modos de relacionamento entre brancos e negros.

Entre filmes maiores e menores, importa aqui a possibilidade de um personagem negro se impor.

O segundo momento é pós 55, depois que começam os conflitos raciais, e o personagem passa a expressar, assim como o ator, as inquietações da população negra diante da exclusão, das humilhações, ku-klux-klan e o escambau.

Por fim, vêm os anos 60. O Oscar, Adivinhe quem Vem para Jantar, de certa forma a aceitação do negro bom, que sabe o seu lugar. Esse é o tipo que cabe a Poitier representar, num momento em que Malcolm X, Panteras Negras etc. levam a questão a uma radicalidade que ultrapassa Poitier.

Esse retrato em movimento é de uma rara inteligência e de uma rara beleza também, que se abre a Poitier com toda a ambigüidade que pesa sobre um homem que, em dado momento da história, representa algo muito maior do que um só pode ser: uma etnia, uma comunidade, um povo, em última análise.

Monday, October 20, 2008

MOSTRA - PRIMEIROS DIAS
INÁCIO ARAUJO

Acho que eu não era o único a achar insuportáveis (insignificantes, na verdade) os filmes em cartaz, mas a Mostra está reabilitando a arte este ano.

Algumas coisas que vi e achei mais que respeitáveis:

Terra Vermelha
Horas de Verão, Olivier Assayas
O Casamento de Rachel, de Jonathan Demme
Mais Tarde Você Compreenderá, de Amos Gitai.

Perdi coisas em que levo muita fé, como "O Silêncio de Lorna". Há ainda os de que gostei muito, um pouco menos: Alexandra, do Sokurov, por exemplo, ou “Sonata de Tóquio”.

Mas há infinitos filmes que não vi. Quem quiser deixar os seus conselhos sobre o que ver, faça-o, por favor. Eu agradeço e acho que todos os amigos freqüentadores do blog também.

Thursday, October 16, 2008

ATOR PROPÕE PROBLEMA QUE NÃO EXISTE
INÁCIO ARAUJO

Pedro Cardoso escreve: "Quando estou nu, sou sempre eu a estar nu, nunca o personagem". Tento me lembrar, inutilmente, de quando Pedro Cardoso, vestido ou não, foi outra coisa que não si mesmo, e me pergunto se esse tipo de propósito não equivale a criar um problema que simplesmente não existe.

Seu ponto, se bem compreendi, é: a nudez, que em algum momento da história já correspondeu a uma atitude libertária, hoje destina-se meramente a atrair público às salas. Trata-se, assim, de algo que avilta a profissão de ator e tende a anular, como diz a namorada, "a tênue linha que nos separa da pornografia".

Na verdade, desde que surgiu, o cinema é acusado de trazer o comércio para o sagrado território da arte. O que não deixa de, em parte, ser verdade. Ninguém imagine que Ruy Guerra não pretendia que seu "Os Cafajestes" fosse visto, quando rodou a famosa cena de Norma Bengell na praia.

De todo modo, essa "tênue linha" de fato tende, por vezes, a ser imperceptível e, pior, a arrastar consigo toda a produção artística moderna. O que dizer, por exemplo, dos romances de Henry Miller? Ou de "O Amante de Lady Chatterley"? E por aí vai. De maneira que esse "lado libertário", já passado, da nudez, não se sustenta.

Não nos faltam problemas no mundo do cinema. Com ou sem nudez, nossos filmes têm sido incapazes de enfrentar a cultura do blockbuster e a comercialização via multisalas; são muito pouco vistos pelo público a que se destinam. Eis coisas que merecem a atenção e a preocupação de produtores, diretores, atores etc.

Se como postulação geral esse manifesto é não mais que um apelo à censura, é preciso atenção ao caso particular. Sugere-se que um diretor teria exibido "rushes" de um filme a amigos e se vangloriado da performance que conseguiu da atriz. É fato muito grave, pelo qual, havendo comprovação, seria cabível, imagino, interpelação judicial. Ao mesmo tempo, é surpreendente uma atriz queixar-se de ter sido constrangida a filmar "cenas que atentavam contra" seu "próprio pudor". Como isso se deu? Ela não leu o roteiro que deveria interpretar? Ou colocaram um revólver na sua cabeça e lhe ofereceram um "negócio irrecusável"?

Toda essa história é tão cheia de elementos estranhos, incompreensíveis, truncados, entreditos, que parece uma ficção mal alinhavada, sombriamente retrógrada, destinada a funcionar como lance de marketing, a serviço não se sabe do que ou de quem.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 13 de outubro de 2008)

Wednesday, October 08, 2008

DISTANTE DO SEU MELHOR, DIRETOR FAZ CINEMA ÍNTEGRO
INÁCIO ARAUJO


As duas horas de "O Sobrevivente" podem ser divididas em duas partes quase idênticas.

Na primeira, o tenente Dieter Ziegler, piloto da Marinha dos EUA no Vietnã, é designado para missão no Laos.

Estamos em 1965, a guerra no Vietnã ainda não tem a extensão que iria adquirir, e a missão de bombardear alvos estratégicos no Laos é absolutamente confidencial.

Ziegler tem o avião derrubado, é feito prisioneiro pelos vietcongues, dos quais consegue escapar pela selva.

Não há muito segredo sobre o fim deste filme: sendo baseado na autobiografia de Ziegler, é evidente que ele consegue escapar. A questão não é essa, e sim: como? Werner Herzog, que se notabilizou como um dos mais importantes cineastas alemães dos anos 60 e 70, ultimamente tem se destacado como documentarista. E o documentário, como se sabe, exige menos de um cineasta do que a ficção: é questão apenas de saber deixar o mundo vir a si. Não é tão simples quanto parece, mas é mais fácil do que ir ao encontro do mundo, transformá-lo e torná-lo digno de crédito.

Em "O Sobrevivente", a primeira metade é apenas sofrível. Não pela modéstia dos efeitos especiais. É que Herzog não parece se interessar pelos aspectos que precedem a fuga: o encontro com outros prisioneiros, as violências a que são submetidos, a permanente ameaça de morte e a maneira como, aos poucos, Ziegler se impõe como líder aos colegas e comanda os planos de fuga.

A segunda metade é de outra ordem. É questão de dois homens - Ziegler (Christian Bale) e seu colega Duane (Steve Zahn) - e uma selva. A selva e suas adversidades. A natureza com a qual esses homens se defrontam a cada instante para sobreviver, até que, por fim, possamos observar talvez o melhor do filme: a transformação de Ziegler em um homem-natureza -uma espécie de identificação completa, na maneira de se ocultar, se alimentar, se proteger dos perigos.

Nesses momentos, parece que estamos de novo diante do Herzog dos velhos tempos, embora num mundo diferente: em que o controle sobre a produção parece relativo, em que sofre com a iluminação óbvia e mesmo com a necessidade de seguir um roteiro nem sempre favorável.

Enfrentando (em selvas da Tailândia) adversidades, Herzog não cede a tentações a que raramente escapam os cineastas, como o sentimentalismo. "O Sobrevivente" não será nunca seu melhor filme, mas é de uma integridade formidável.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 07 de dezembro de 2007)