Canto do Inácio

Thursday, April 24, 2008

VERHOEVEN FAZ JOGO COM A DESCRENÇA NA NARRATIVA
INÁCIO ARAUJO


Se existe uma lição a tirar de "A Espiã" é que numa guerra nunca se sabe quem é quem. É possível levar a lógica um pouco mais além: a guerra traz à tona o que existe de mais profundo nas pessoas, da generosidade à ganância, do altruísmo ao egoísmo mais profundo, da fidelidade à traição.

Para generalizar a lição, é possível concluir, de modo muito pessimista, que, a rigor, nunca conhecemos ninguém.

Digamos que o filme de Paul Verhoeven fica, nesse nível, por aí. Mas há razões para crer que não seja esse o aspecto principal das reflexões do autor de "Robocop" de volta à Holanda.

Senão, vejamos: não será pelo menos estranho constatar que esse cineasta experiente realiza um filme em que se abre tão gentilmente aos cada vez mais numerosos caçadores de incongruências e implausibilidades? E elas pululam ao longo deste "thriller" admirável. Para citar apenas uma, logo no início do filme: não soa meio falso que uma moça judia de família rica, como Rachel/Ellis, vire cantora profissional nos anos 30?

Questões desse tipo podem ser suscitadas ao longo de toda a trama, que se organiza na Holanda, no final da guerra. Devido ao assédio dos nazistas, Rachel e família tentam fugir para a Bélgica. A balsa em que viajam é metralhada pelos alemães. Única sobrevivente, Rachel (Carice van Houten) engaja-se em um núcleo da Resistência e passa a se chamar Ellis de Vries. É feita espiã e torna-se amante do chefe do serviço secreto da SS, Ludwig Müntze (Sebastian Koch).

Toda história de espionagem - ainda mais se duplicada pela resistência - carrega um tanto de inverossímil, como Htichcock sabia muito bem. Mas a época de Hitchcock era de crença. Hoje, é de descrença. A ficção é objeto de desconfiança, como se "a vida vivida" fosse de verdade e a imaginada fosse uma mentira. Não é por acaso que tantos filmes (inclusive este) usam a caução: "baseado em fatos reais".

É esse núcleo da arte contemporânea que Verhoeven trabalhará de maneira específica aqui. As reviravoltas são tão rocambolescas que é quase impossível ao espectador não se perguntar se aquilo é possível.

Ao mesmo tempo, as cenas são tão bem construídas que logo esquecemos nossa inquietação e deixamo-nos levar por um "e por que não?".

Sim, por um lado a guerra torna tudo possível. Mas não é sobre isso que se apóia "A Espiã", e sim sobre a contemporânea descrença na narrativa.

É como se Verhoeven jogasse o espectador contra o seu próprio ceticismo: é justamente por resistir à narrativa que ele se deixará levar pelas imagens.

E, quando está embalado por elas, Verhoeven providencia uma nova reviravolta, uma nova ambigüidade no rosto dos personagens, um novo mal-estar que o retire de seu conforto (exemplos de momentos de mal-estar: quando fustiga o protestantismo holandês; quando observa o anti-semitismo infiltrado na Resistência).

É por desafiar de forma tão aberta as convenções cinematográficas que Paul Verhoeven tem sido vítima de uma verdadeira campanha de difamação a cada filme que faz, de "Showgirls" a "Tropas Estelares". "A Espiã" chega ao Brasil vítima de um título nulo ("O Livro Negro" - com mais de um sentido - seria mais fiel ao original e mais interessante). Talvez ele ajude, em sua platitude, a exorcizar alguns dos mal-entendidos que rondam a carreira desse notável autor.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 11 de janeiro de 2008)

1 Comments:

  • Esse é um daqueles filmes que você gosta e não sabe exatamente o porquê. Muito bom.

    By Blogger Wolf, at 7:58 AM  

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