Canto do Inácio

Sunday, May 02, 2010

FILME RENOVA TEMAS DE WOODY ALLEN
INÁCIO ARAUJO


Os fiéis de Woody Allen já conhecem Boris Yellnikoff (Larry David) de algum lugar. Afinal, ele costumava frequentar seus filmes dos anos 70. É um desses intelectuais cheios de si, sempre em busca da verdade absoluta e sempre prontos a se apaixonar pela primeira adolescente que passe à sua porta.

A diferença é, talvez, que Boris envelheceu. À pretensão acrescentaram-se algumas manias. Talvez alguns fracassos.

Ele é o autoproclamado gênio, quase indicado para o Nobel, que ganha a vida dando aulas de xadrez a crianças e se diverte proclamando o fracasso da espécie humana. Será um gênio ou um cretino?

Em todo caso, Boris é o tipo perfeito para encarnar aquilo que, desde sempre, melhor funciona em Woody Allen: uma mistura de comédia e drama, em que a gravidade das coisas apenas se insinua sob o humor.

E "Tudo Pode Dar Certo" é, com as devidas distâncias, uma comédia dramática na linha de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" ou "Manhattan".

Não é mais a psicanálise que dá o tom: o tempo passou o bastante para que Boris tenha a ilusão de se curar. Aliás, ele não acha que tenha nada do que se curar: suas certezas são inarredáveis. A primeira delas começa a ruir logo nos primeiros minutos, quando surge à sua porta Melody, uma loirinha do Mississipi. O misantropo não consegue vencer seu impulso humanista e não só acolhe a moça em sua casa como, pouco depois, está vivendo com ela.

Se esse encontro absurdo pode acontecer, tudo mais pode acontecer. Por exemplo, a vinda, do Sul, da mãe de Melody, fanática religiosa que, em Nova York, se transformará.

De certo modo, essas coisas podem acontecer porque Allen aqui reencontra, na maturidade, tipos de Nova York aos quais já nos apresentou. Se ele retoma seu gosto pelas caricaturas, convém não esquecer que Woody Allen realiza aqui um conto de Natal, isto é, reencontra aquele gênero de filmes pródigos em milagres, em que se cantava a maravilha da vida.

Aqui não há milagres. Existe uma intervenção copiosa do acaso. Com isso, Allen fica, outra vez, como nos seus melhores trabalhos: com um pé no passado e outro no presente, um na tradição e outro no prazer de constatar a permanência de certos sentimentos - desde que renovados, é claro. É isso que almeja e é a isso que, afinal, chega: um filme otimista a partir de um pessimista. Um filme em que a vida parece pródiga em milagres, mas eles não vêm de Deus. Um filme laico neste tempo de religiosidade.

Não faltará, é verdade, quem reclame que, por trás de Larry David, pode-se ver Allen, o ator.

É verdade. Isso acontece com frequência, quando Allen dirige sem ser ator: como se gostasse de se ver em um dos personagens. É um problema menor.

Na verdade, um não problema neste que, a mim, parece o trabalho mais estimulante do autor ao menos nesta década.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 29 de abril de 2010)

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