Canto do Inácio

Monday, May 10, 2010

WOO TRANSFIGURA VIOLÊNCIA QUATRO VEZES
INÁCIO ARAUJO

O mercado brasileiro de vídeo é do tipo tudo ou nada. No caso do chinês John Woo estamos na fase do tudo. Boa parte dos filmes de sua fase chinesa (anterior a "O Alvo", de 93, em que dirigiu Van Damme) já está disponível.

É melhor ir com calma, sob risco de enjoar do trabalho deste diretor de primeira linha. Em todo caso, não há como evitar "Fervura Máxima" (1992), um dos melhores filmes do diretor chinês.

A história não é tão diferente assim das outras. De um lado existe um policial intrépido (Chun Yun Fat, ator constante do diretor), disposto a desmantelar uma gangue. De outro, um policial 'infiltrado. Mas, quem é ele? Qual o verdadeiro inimigo? E, como decorrência, quem sou eu?

Essa eterna dúvida sobre a natureza das coisas, que o cineasta explora com frequência, está presente de maneira ostensiva em "Fervura Máxima". E com o máximo de talento, também.

A violência hiperbólica, tão exagerada que até leva o espectador a esquecer da violência, a articulação dos movimentos (ora rápidos, ora em câmera lenta), os excessos que levam a ver o filme como uma espécie de musical sem música -como pura coreografia- estão presentes em tempo integral. Convivem com uma trama intrincada, onde o cineasta contrabandeia elementos personalíssimos para o filme de gênero.

"Alvo Duplo 2" (1987) desenvolve os mesmos elementos, com menos brilho. No centro, está um ex-gângster que tenta levar vida honesta. Não é fácil. Os dois irmãos (um deles o mesmo Yun Fat, o outro, Leslie Cheung, já visto em "Adeus Minha Concubina", de Chen Kaige) que já estavam presentes em "Alvo Duplo" se empenham em combater a montanha de malfeitores circundantes.

No meio, a batelada habitual de mortes e algumas dores profundas (a filha do ex-gângster, embora confiada a um dos irmãos, morre). Apesar das virtudes evidentes, é um trabalho médio, que não concorre em interesse com os melhores filmes do diretor.

"The Killer" (1989) desenvolve ostensivamente um viés constante nos filmes de Woo, que é o catolicismo. Forma, com "Fervura Máxima", a dupla de seus melhores filmes pré-EUA. A história diz respeito a um matador (Yun-Fat) que, ao fazer seu último trabalho, cega, por acidente, a mulher por quem irá se apaixonar.

A maldição que se abate sobre ele (cujas transações com armas se passam numa igreja) de certo modo resume o olhar de Woo: o homem é aquele que tenta se limpar de uma maldição (pode-se chamar também de pecado) original. "The Killer" é brilhante.

Por fim, temos "A Jugular Blindada" (1979), um kung fu típico, bem anterior aos policiais que já se conheciam. O interesse vem, em boa parte, daí. Podemos compará-lo a centenas de kung fus que passaram nos cinema ou TV.

Woo está duzentos pontos acima da média. Evita o uso indiscriminado da zoom (a aproximação e distanciamento do personagem por meio da objetiva de foco variável), histórias idiotas de lutadores. A coreografia é ok e a construção dos personagens aproximam "A Jugular" mais dos velhos filmes japoneses de samurai do que do kung fu vulgar.

Apenas para dar um exemplo: a história começa com o casamento de um senhor. As pessoas comentam a beleza da noiva e observam que ela "deve ser de boa família".

A isso, o nobre replica que ela é uma prostituta que encontrou em um bordel. Logo depois, dezenas de espadachins inimigos invadem o local. O nobre se dá conta de que a própria noiva o havia traído. Comenta: "Eu te dei meu amor, como você fez isso?" A moça não se aperta: "É que ele me pagou o dobro." Comentário final do vilão: "Vê? As prostitutas são todas iguais".

Esse é o começo, chave de entrada numa intriga intrincada, à moda de Woo, que leva o espectador a fazer uma boa idéia do que seja o bom kung fu e confirma a suspeita de que o gênero é bem mais rico do que faz supor a produção marreta que normalmente chega até nós.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 9 de agosto de 1995)

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