Canto do Inácio

Tuesday, October 24, 2006

“A Mosca” mergulha na angústia humana
INÁCIO ARAUJO

Há duas características que tornam apavorantes as mutações que costumam viver os personagens de David Cronenberg. A primeira é que vivem a mutação em estado de euforia. A segunda é que a mutação é terrivelmente concreta.

Se assistimos a "A Mosca de Cabeça Branca", que Kurt Neumann fez em 1958, logo percebemos seu caráter abstrato. Já o "remake" feito 1986, "A Mosca", é quase insuportavelmente mergulhado no sensível.

Parece que a Neumann só interessava a idéia de um homem transformando-se em inseto, perdendo sua humanidade por buscar os limites da existência. A Cronenberg isso também interessa, mas apenas como decorrência da transformação física em si. Eis o que torna o filme tão repugnante quanto atraente.

Aqui, Jeff Goldblum é o cientista que realiza experiências de transporte da matéria no espaço, como que desmontando e remontando corpos átomo por átomo. Como bom cientista cronenberguiano, ele é sua própria cobaia.

Durante a experiência acontece o que todos sabemos: uma mosca intromete-se no processo. A partir daí, começa a transformação do cientista.

De início, ele é só alegria. Sua força torna-se descomunal, ele parece esses mastodontes de academia de musculação. Não é mais o conhecimento que o inspira, mas a força bruta.

Não será assim até o final, pois a partir de certo ponto o lado animal que ele descobre em si torna-se "o" lado, e a situação beira a tragédia, pois as características humanas tendem a minguar dolorosamente.

Ninguém melhor do que David Cronenberg tem intuído o homem mutante da passagem do século 20 para o 21 e sua angústia: somos a experiência errada de um deus menor, ou seremos o deus de nós mesmos?

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