Canto do Inácio

Tuesday, September 12, 2006

Jovial, Oliveira ri da vaidade humana
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em seus filmes, Manoel de Oliveira já fez drama e comédia, já viajou no tempo, percorreu a história do Ocidente e deixou-se levar pela melancolia portuguesa, enveredou pelo teatro e pela poesia. A cada novo filme não sabemos o que esperar. E ele sempre termina por surpreender.
No caso de "Espelho Mágico" as surpresas se acumulam ao longo da trama. Tudo começa em tom grave no interior de um presídio onde, basicamente, se discute filosofia. O diretor, que cultiva cactos, gosta de palestrar com o suave presidiário Luciano (Ricardo Trepa). Este, por sua vez, aprecia as conversas com o vingativo Américo.
Parece que vamos assistir algo à maneira de Robert Bresson. Subitamente, porém, o curso é desviado: Luciano sai da cadeia e é levado pelo irmão a trabalhar na casa de Alfreda (Leonor Silveira), uma milionária que dedica o essencial de seu tempo à fé e a receber conselhos de teólogos como o professor Heschel (Michel Piccoli) e o padre Clodel (Lima Duarte).
É do primeiro que vem a teoria de que Nossa Senhora poderia muito bem ser uma mulher rica como Alfredo. Tal idéia embala o sonho maior da carola: receber uma aparição da Virgem Maria. Boa teoria: se ela apareceu até para uns pastorzinhos em Fátima antes, por que não para ela?
Aos poucos, enquanto cresce a obsessão de Alfreda, muda o registro do filme. E Oliveira parece contemplar sorrindo este mundo meio fora do tempo, onde a riqueza é só um atalho para o reino de Deus. Um mundo fútil, a rigor, e vaidoso, mas antes de tudo mimado: Alfreda quer ver a Virgem Maria assim como uma criança quer o brinquedo da vitrine ou seu marido quer financiar futuros músicos.
É então que aparece em cena Filipe Quinta (Luís Miguel Cintra), o falsário, velho conhecido da cadeia, a quem Luciano conta sobre as manias da patroa. Cínico, Filipe trata de transformar a obsessão em realidade e sai à cata de uma Virgem Maria, que encontra na pessoa de Vicenta (Leonor Baldaque).
O filme divide-se em três partes. A primeira, dedicada à cadeia; a segunda, à casa de Alfreda; a terceira, a Filipe Quinta. Nenhum desses três momentos narrativos se completa. Da primeira parte, restará Luciano, mas o diretor e Américo desaparecerão sem deixar rastro. Da segunda, restam Alfreda e o marido, mas desaparecem os padres, tão marcantes no início. Por fim, a própria Virgem de Filipe Quinta, se não desaparece, passa por uma espécie de desvio de função.
Se ri da fé vaidosa de sua rica carola -e, por extensão, da importância que certas pessoas dão a si mesmas-, Oliveira também ri da ortodoxia narrativa: ao truncar a história, ao abandonar certos fios, ele se desfaz das regras que oprimem o cinema tanto quanto podem oprimir os homens. Em troca, postula a liberdade, o prazer, o gosto pela amizade, pelos personagens que ali estão apenas porque os ama (ou aos seus atores, o que dá quase no mesmo). Não é só porque se passa de clichês que um homem é "sério".
Aos 97 anos, Manoel de Oliveira parece cada vez mais inventivo e moleque.

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