Canto do Inácio

Sunday, November 26, 2006

Feito em seis dias, clássico de Ulmer constrói labirinto
INÁCIO ARAUJO

"Curva do Destino" é filme-mito por excelência. O filme feito em seis dias, o série "Z" que se tornou clássico. Mas também o filme a que ninguém mais há muito tempo assistia.
Sua produtora é a PRC. Os poucos que já ouviram falar dela sabem que ficava do lado pobre de "Poverty Row" nos anos dourados de Hollywood. Seu diretor, Edgar G. Ulmer, estava destinado, no entanto, ao lado rico da cidade. Foi o assistente que F.W. Murnau trouxe da Alemanha, o roteirista de "Tabu" (1931).
Começou uma carreira promissora de diretor na Universal, fez um terror originalíssimo chamado "O Gato Preto" (1934).
Mas foi pego na curva do destino: tirou a mulher de um parente de Carl Laemmle, o dono da Universal. Laemmle era conhecido pelo nepotismo e pelas vinganças. O empresário jurou que Ulmer nunca mais botaria os pés em Hollywood. E foi mais ou menos isso que aconteceu.
Talvez Ulmer tivesse terminado seus dias dirigindo filmes iídiches em Nova York. Mas o destino fez nova curva: Laemmle foi à falência. Não que isso tenha beneficiado Ulmer tanto assim. Mas pelo menos pôde voltar a dirigir alguns filmes de verdade, inclusive a obra-prima "Madrugada da Traição", um dos melhores faroestes já realizados.
Em "Curva do Destino" (1945), Al, um sujeito duro consegue carona com um tipo estranho e parecido com ele. Quer ir até Los Angeles encontrar a noiva, que tenta a sorte no cinema. Misteriosamente, o sujeito que lhe deu carona morre. Por cálculo, toma o seu lugar e o seu dinheiro. Por azar, topa com uma chantagista que conhecia o finado.
É o "détour". A prova de que Pascal tinha razão: de que entre um ponto e outro existem infinitos pontos e que, portanto, não chegamos nunca a lugar nenhum. Essa a verdadeira história do filme: a do labirinto em que se mete Al, que só parecia ser uma linha reta. A travessia, no entanto, é um tormento. Esse tormento é que faz a grandeza deste filme de menos de 70 minutos: o sentimento que temos de estar numa roda sem fim e sem princípio, perdidos num espaço a cada minuto mais complexo.
O sentimento trágico que perpassa o filme é a sua riqueza. Talvez nunca fique claro porque a chantagista chantageia aquele sujeito. Mas isso não perde importância, diante da maneira encarniçada como Ann Savage dilacera sua presa.
Talvez tudo isso não fosse tão perceptível caso Ulmer não usasse a câmera com tanta maestria, usando os deslocamentos constantes (e muito apropriados) para evitar cortes, ganhar tempo (ou seja: economizar) e impor essa atmosfera pesada que caracteriza o seu filme.
"Curva do Destino" é uma constante luta contra a adversidade. Nisso, aliás, o personagem e o autor se igualam. Talvez venha daí o sentimento de estarmos contemplando uma dessas obras raras, em que cada fotograma parece carregar o combate de seu diretor para se exprimir. Uma obra não perfeita, mas na qual até as imperfeições conspiram para torná-la imperdível.

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