RATTON E A TORTURA
INÁCIO ARAUJO
Só dá pra entender pelo ponto de vista comercial a declaração do Helvécio Raton, segundo a qual é preciso colocar as coisas às claras no Brasil, no tocante à tortura.
É uma justificativa para as horríveis cenas de tortura que filmou em “Batismo de Sangue”. Horríveis em mais de um sentido. Dizer que a tortura é central no filme não explica nada, porque a morte também é essencial em, digamos, “M”, de Fritz Lang. A questão é outra.
Nem sempre abordar francamente um assunto significa trazê-lo à luz, e esse me parece o equívoco do Ratton. A diferença entre a vida e a arte é que a segunda requer mais imaginação. Era preciso um esforço para nos fazer crer em quão dolorida pode ser a tortura _não mostrá-la não equivaleria a ocultar, mas a fazer-nos sentir uma violência que no filme é meramente retórica. Essa a questão de Lang.
Da mesma forma, o fato de certas coisas terem acontecido na vida real não significa que se transformem em boa obra de arte. Não sei se o delegado Fleury era o personagem ridículo que nos é apresentado no filme. Mas não era sua imbecilidade que o tornava monstruoso, era o poder que detinha. Esse poder pode ser mostrado de forma histriônica ou não. Ratton ficou com o histriônico, e me parece que, como no caso da tortura, se equivoca.
O desagradável é que se equivoca num filme em que fez muitas coisas certas. O elenco me parece ótimo, muito bem escolhido e dirigido, e a idéia de trazer o drama dos dominicanos à cena é boa. Talvez seja a melhor representação do clima do movimento estudantil da época que vi até hoje. Agora, não acredito nesse papo de que a questão é denunciar a tortura. Nada disso. O problema é que esses padres acabaram com a fama de terem sido os bananas, os fracos, os traidores que entregaram Marighela. Toda a questão do filme é essa: desmentir essa versão, mostrar que os padres só denunciaram porque foram barbaramente torturados. Essa a única razão que justifica essas cenas. E esse é o não-dito que envolve o filme e é o que o compromete. Ratton atribui um sentido ao suicídio de frei Tito: o fato de se ver perseguido pela figura terrível de Fleury (o que justificaria também o Fleury ridículo a que somos apresentados). Quem pode garantir que seja? Será que a fama de dedo-duro dos dominicanos não pesou nisso? Será que ele não tinha uma tendência depressiva que independia disso? Por que reduzir as coisas a uma causa, por relevante que seja? É por opções como essa que o filme se enfraquece.
Pessoalmente, teria preferido ver um filme abertamente católico, vergonhosamente católico (o que ele é sem admiti-lo). Essa história de tortura, de denúncia, por favor, é uma opção pelo óbvio que demonstra a fragilidade teórica do filme. Não é só desse filme, por sinal. É a do “cinema industrial”, “de comunicação”, que se difundiu como fatalidade nacional. Não é.
Desculpem, a nota está grande e todo mundo já deve estar de saco cheio.
INÁCIO ARAUJO
Só dá pra entender pelo ponto de vista comercial a declaração do Helvécio Raton, segundo a qual é preciso colocar as coisas às claras no Brasil, no tocante à tortura.
É uma justificativa para as horríveis cenas de tortura que filmou em “Batismo de Sangue”. Horríveis em mais de um sentido. Dizer que a tortura é central no filme não explica nada, porque a morte também é essencial em, digamos, “M”, de Fritz Lang. A questão é outra.
Nem sempre abordar francamente um assunto significa trazê-lo à luz, e esse me parece o equívoco do Ratton. A diferença entre a vida e a arte é que a segunda requer mais imaginação. Era preciso um esforço para nos fazer crer em quão dolorida pode ser a tortura _não mostrá-la não equivaleria a ocultar, mas a fazer-nos sentir uma violência que no filme é meramente retórica. Essa a questão de Lang.
Da mesma forma, o fato de certas coisas terem acontecido na vida real não significa que se transformem em boa obra de arte. Não sei se o delegado Fleury era o personagem ridículo que nos é apresentado no filme. Mas não era sua imbecilidade que o tornava monstruoso, era o poder que detinha. Esse poder pode ser mostrado de forma histriônica ou não. Ratton ficou com o histriônico, e me parece que, como no caso da tortura, se equivoca.
O desagradável é que se equivoca num filme em que fez muitas coisas certas. O elenco me parece ótimo, muito bem escolhido e dirigido, e a idéia de trazer o drama dos dominicanos à cena é boa. Talvez seja a melhor representação do clima do movimento estudantil da época que vi até hoje. Agora, não acredito nesse papo de que a questão é denunciar a tortura. Nada disso. O problema é que esses padres acabaram com a fama de terem sido os bananas, os fracos, os traidores que entregaram Marighela. Toda a questão do filme é essa: desmentir essa versão, mostrar que os padres só denunciaram porque foram barbaramente torturados. Essa a única razão que justifica essas cenas. E esse é o não-dito que envolve o filme e é o que o compromete. Ratton atribui um sentido ao suicídio de frei Tito: o fato de se ver perseguido pela figura terrível de Fleury (o que justificaria também o Fleury ridículo a que somos apresentados). Quem pode garantir que seja? Será que a fama de dedo-duro dos dominicanos não pesou nisso? Será que ele não tinha uma tendência depressiva que independia disso? Por que reduzir as coisas a uma causa, por relevante que seja? É por opções como essa que o filme se enfraquece.
Pessoalmente, teria preferido ver um filme abertamente católico, vergonhosamente católico (o que ele é sem admiti-lo). Essa história de tortura, de denúncia, por favor, é uma opção pelo óbvio que demonstra a fragilidade teórica do filme. Não é só desse filme, por sinal. É a do “cinema industrial”, “de comunicação”, que se difundiu como fatalidade nacional. Não é.
Desculpem, a nota está grande e todo mundo já deve estar de saco cheio.
7 Comments:
fora os slogans que saem da boca deles durante toda a primeira metade do filme
By Sérgio Alpendre, at 4:58 PM
longa??? achei curta, da proxima vez faça-a duas vez maior. por favor. ;)
By Anonymous, at 5:21 AM
Também achei curta. Escreva colunas maiores e com maior freqüência. Achei ótima a anterior, sobre pirataria. Rendeu boas risadas. Um abraço
By Anonymous, at 6:16 AM
Inácio, concordo contigo em quase tudo. Acho também o elenco tão bem escolhido, mas nem tão bem dirigido assim. Acho que não só o catolicismo culpado e envergonhado encobre tudo que ali poderia dar um filme como ainda destrói qualquer relação com quem assiste. Nomes de livros recitados (como lembrou o Pedro Butcher), frases-feitas políticas pulando da boca, personagens desenvolvidos a toque de caixa, a violência pornográfica. Acho um filme educativo infantilmente mal-feito, difícil de fazer sentir algo aqui do outro lado da tela. Mas, por estranho que pareça, "Proibido Proibir" não te lembra tão mais o ambiente estudantil que aquela época parece ter conhecido?
By Anonymous, at 5:05 PM
Faço das suas palavras minhas palavras, Inácio. Acrescento apenas que o Fleury não somente é ridículo como também risível (sempre com o dedo em riste, patético), sendo esse personagem junto com o próprio Frei Titto muito mal construídos.
Pena que aqui em Minas o filme tem sido glorificado a torto e a direito.
By Anonymous, at 8:01 PM
Só para dizer o óbvio, estava muito interessante, pena que acabou...parabéns pelo texto!
By Manoel Gomes, at 8:08 AM
Ainda nao vi o filme, mas tendo a concordar com o seu ponto de vista. Me fez lembrar Kundun, no qual Scorsese opta por mostrar o massacre dos monges tibetanos de forma sutil. Ah, mas quem quer sutileza hoje em dia, nao? Vide o sucesso de "24 horas" ou "A Paixao de Cristo".
By Anonymous, at 12:14 PM
Post a Comment
<< Home