Canto do Inácio

Sunday, June 08, 2008

COWBOY DE KING VIDOR CONDUZ UM DOS GRANDES FAROESTES DA HISTÓRIA
INÁCIO ARAUJO


"Homem sem Rumo" é, basicamente, a história de um cowboy que foge do arame farpado. Todos sabemos que os cowboys fogem da civilização, rumo a uma vida mais livre. É uma das convenções centrais do faroeste. Mas Kirk Douglas (ou Dempsey Rae), aqui, é um pouco mais radical: é do arame farpado que ele foge.

E não pode haver sinal mais agressivo da chegada da civilização que o arame farpado, que designa o direito de propriedade. Quem transgredir, avançando sobre domínios do outro, vai se ferir seriamente.

Isso posto, a tendência de Dempsey é se retirar. Não fugir, pois é um exímio atirador. É também um "bon vivant", aprecia música e mulheres. A diferença entre fugir e retirar-se, no entanto, pode ser diminuta.

Existe uma facilidade em sua atitude básica -botar sua sela num trem e partir tão logo o arame farpado aparece.

Por isso ele é o "homem sem estrela" do título original: não tem estrela a seguir, não tem rumo. Ora, o rumo parece se mostrar na pessoa de Reed Bowman (Jeanne Crain), uma proprietária de gado que chega do Leste trazendo o espírito predatório: seu negócio é usar as terras do governo como pasto, devastá-las em poucos anos, constituir um rebanho enorme, enriquecer e retirar-se.

Ora, sabemos, não é para isso que o Oeste foi criado. E sim para que a terra fosse produtiva, gerasse trabalho e riqueza, geração após geração. O capitalismo predatório não é coisa que um americano aceite facilmente. Menos ainda um americano liberal, como King Vidor.

É em torno disso - como da atitude que Dempsey Rae terá quanto ao arame farpado - que gira a última obra-prima de King Vidor. Filme modesto, em termos de produção, que precede as superproduções ("Guerra e Paz" e "Salomão e a Rainha do Sabá") com que encerraria a carreira, mas às quais é superior em vigor e invenção. "Homem sem Rumo" é um dos grandes faroestes da história.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 08 de junho de 2008)

2 Comments:

  • Um dos primeiros textos do Inácio pra Folha (lá se vão 25 anos) foi sobre o filme do Vidor.


    Uma aula de faroeste pelo mestre King Vidor
    HOMEM SEM RUMO/Man Without a Star (1955), de King Vidor


    Em uma das cenas de Homem Sem Rumo, Kirk Douglas faz uma demonstração de malabarismo com o revólver para seu jovem escudeiro, Texas Kid. O Kid assiste a tudo aquilo admirado, enquanto o espectador vê com desconfiança o exibicionismo vulgar de Kirk. Por alguns segundos, porém: em um instante, ele interrompe o gesto, quebra o encantamento em que está mergulhado o garoto e arremata com uma frase definitiva:

    "Rodar a arma não vai salvar a sua vida. Só atirar".

    A seqüência – bela porque trabalhada em um limite extremamente perigoso – é ao mesmo tempo uma postulação estética: não é o efeito que vale, mas a objetividade; não é a grandiloqüência, mas o vigor. Elementos que se encontram com vigor na obra de King Vidor e que poderemos rever ainda uma vez neste que é um dos melhores "westerns" dos anos 50 (um período de fausto do gênero). Mas, como toda posição estética, também esta implica uma renúncia: chegar ao ponto, contar sua história, significa igualmente abrir mão da "arte", da "profundidade", o que Vidor faz sem hesitação.

    Nas mãos de um cineasta menos seguro,o roteiro de Borden Chase e D. D. Beauchamp poderia sem dificuldade tornar-se o estudo do caráter de um homem que,embora apto a enfrentar as áridas condições de vida do Oeste, prefere deslocar-se, evitar as barreiras que surgem à sua frente; poderia até se converter em uma ingênua parábola pacifista.

    Nada disso com Homem Sem Rumo: ao contar a história do homem errante que encontra o jovem Texas Kid num trem e o inicia na vida, King Vidor opta por uma perfeita sujeição do significado à história. Talvez por isso seja possível discernir tantos sentidos possíveis no filme. Mesmo se sabemos de Vidor – por todo seu passado – que é antes de mais nada um individualista, essa posição não se mostra genericamente, mas de forma pontual: há que ver como Dempsey Rae (Kirk Douglas) saca a arma rápido como um relâmpago contra seu próprio amigo ou como – de modo igualmente fulminante – abre sua camisa para mostrar as chagas causadas pelo arame farpado. Há que ver cada imagem, seguir cada passo do homem sem rumo para entender-lhe o passado e justificar o presente: desmontar um destino e remontá-lo diante de nossos olhos.

    Em outras palavras, a estética que prega King Vidor sustenta-se da capacidade de criar vida através do acúmulo de um sem-número de pequenos detalhes que isolam o personagem da multidão (da Turba, título de seu clássico filme mudo) e fazem desta vida – ao inicio como ao final – um perfeito mistério. Porque entre tantas coisas que nos diz esse filme, onde a beleza não raro deriva em perversão (como no caso da proprietária de gado) e a violência sem poesia, podemos isolar em Homem Sem Rumo a idéia de um perfeito mistério do destino humano: absolutamente pessoal, ele é, por paradoxo, comum a todos os seres. Tangível, na medida em que o visualizamos, ele permanece no entanto insondável: para além da Justiça e da Injustiça, da Felicidade ou da Infelicidade, a vida é a um só tempo tautologia (que se afirma sendo) e labirinto (perda, ausência de rumo).

    Um grande filme, clássico pelo desenvolvimento da intriga, moderno pela seca elegância, eterno pela magistral alternância de tempos fortes e fracos, pela orquestração de elementos que vão desde a excepcional presença de Kirk Douglas até a secura de uma decoração onde não se vê traço de azul (e portanto de tranqüilidade). Cada plano tem uma idéia, mas ele não se impõe como tal, não faz questão de ser percebida como raciocínio, mas como vida.

    A arte de King Vidor talvez seja um pouco como o corpo de Dempsey Rae (Kirk Douglas): algo que esconde com cuidado e que, se mostra, o faz apenas por completa necessidade. O filme que passará hoje à noite na TVS é um desses que se pode ver, rever, rever de novo e, se possível, gravar: não é todos os dias que se assiste a uma aula de cinema.

    (Folha de S. Paulo, 27 de abril de 1983)

    By Anonymous Anonymous, at 2:38 PM  

  • Obrigado Juliano pela cortesia. Outro belíssimo texto.

    By Anonymous Anonymous, at 8:26 PM  

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