Canto do Inácio

Wednesday, December 19, 2007

"SOBRE MENINOS E LOBOS" TRANSLUZ DUPLICIDADE DA VIDA
INÁCIO ARAUJO

Às vezes alguém pergunta por que mesmo os filmes menores de Clint Eastwood merecem elogios dos críticos. A resposta é muito simples: basta compará-lo aos filmes da maior parte dos outros realizadores. No drama, no melodrama, no faroeste, Eastwood sempre tem um ponto de vista próprio a expor, algo a desenvolver que preserva a coerência do conjunto de sua obra.

Não importa tanto qual a origem do argumento de "Sobre Meninos e Lobos", por exemplo. Na história dos três amigos de infância que se reencontram na maturidade, Eastwood coloca seu olhar pessoal com muita ênfase.

Vejamos: Sean Penn é o ex-criminoso cuja filha é assassinada. Kevin Bacon é o que se tornou policial e investiga o caso. Tim Robbins é aquele que, em menino, foi violentado por um padre e que hoje ainda convive com esse trauma. Ele é, por isso mesmo, o principal suspeito do assassinato.

O desenvolvimento da trama é razoavelmente vulgar, assentando-se em mal-entendidos. No entanto, o filme nos interessa e nos prende a atenção. É possível que isso se dê, ao menos em parte, devido à atuação do elenco - que é uma virtude de diretor, diga-se.

Mas existe, antes de tudo, esse apego de Eastwood à duplicidade da vida. Seus personagens sempre têm duas vidas. É o caso, aqui, de Tim Robbins: sua primeira vida ficou na infância, precede o momento da violentação. A segunda vem depois. A segunda, no mais, dificilmente pode ser chamada de vida: ele tornou-se um fantasma.

Sua existência é somente a confirmação da morte moral que o atingiu na infância.Por que ele sente as coisas assim? O filme não explica. Há um quê católico nisso, é evidente: se algo de ruim acontece, a culpa deve recair sobre a vítima. É assim também em "O Homem Errado", de Hitchcock, não é? Eastwood coloca-se aqui, bem incisivamente, como um cineasta "à altura do homem". Ou seja: em briga com Deus.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 16 de julho de 2005)

3 Comments:

  • Acredito piamente que este filme, um dia, será aclamado como o melhor de Clint.

    Atenciosamente,

    Mãe Dinah, ooops... Mario

    By Anonymous Anonymous, at 7:43 AM  

  • Acho extraordinário esse filme, de uma secura sem igual.E, além do mais, Clint consegue fazer um tratado sobre a violência comtemporânea sem mostrar praticamente cenas de sangue.Há toda aquela predisposição de quem se acha injustiçado de, se sentindo como um Deus, fazer julgamentos precipitados,ansiosos,baseados no rancor... Muita coisa ali gira em torno de julgamentos humanos e precários.Somente a personagem de Kavin Bacon, visível alter-ego de Clint,na maneira de andar,de postar o ombro, mantém a serenidade sóbria diante dos acontecimentos.Além do mais, tem algo ali muito forte de tragédia(sentido grego mesmo com desdobramentos sheakspeareanos, um caos que leva a outro) de situações arbitrárias, amigos que terminam se separando por circunstãncias(os laços como fracos diante dessas circunstãncias), que é notável pela extrema precisão.

    By Blogger A.C., at 4:21 PM  

  • Concordo com o Alessandro. Entre outras coisas, aquela personagem da Laura Linney é a própria LAdy Macbeth - isso fica claro no discurso final dela.

    By Anonymous Anonymous, at 11:05 AM  

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