Canto do Inácio

Tuesday, March 17, 2009

CINEASTA REENCONTRA A TRADIÇÃO PARA TRANSFORMÁ-LA
INÁCIO ARAUJO


Clint Eastwood não esperou até fazer "Bird" para se tornar um bom diretor. A partir dali, apenas tornou-se mais fácil dissociá-los das figuras do caubói rústico e do policial violento que o haviam tornado famoso.

É verdade que, naquele momento, final dos anos 80, deixam de existir os tateamentos estilísticos dos primeiros anos: Clint adotará então uma linha classicizante, em contraste com vários de seus filmes iniciais (como "O Estranho Sem Nome"), em que o estilo ainda parecia dependente ora de Sergio Leone, pela estilização, ora de Don Siegel, pela franqueza.

Desde ali, no entanto, alguns elementos temáticos surgiam: a presença da morte como referência quase obrigatória, o aspecto sadomasoquista da violência. É aos poucos, na medida em que amadurece, que seus filmes passam a expressar uma preocupação mais marcada com o passado, com aquilo que o tempo representa como perda e dor. É algo que o belíssimo "Bronco Billy" (1980) já anuncia, ao colocar em cena a figura do cowboy deslocado no mundo contemporâneo.

Clint é um dos raros diretores que aprecia, em suas entrevistas, referir seu apego aos filmes clássicos a que assistiu. Não faz isso para agradar aos interlocutores. É com eles, efetivamente, que se dá seu diálogo. Mas não se trata de voltar no tempo, nostalgicamente. Trata-se de reencontrar uma tradição para transformá-la. Assim, em "Os Imperdoáveis", provavelmente seu melhor filme, o herói já não é o caubói, mas o fantasma do caubói: não o tipo heroico construído pelos velhos faroestes, mas um bando de velhacos, bêbados, boçais.

Se o filme clássico é o território da crença, nossa era é a da descrença, da dúvida. O presente precisa se alimentar do passado se quiser crescer, nos lembram os filhos caretas de "As Pontes de Madison". Mas o movimento é pendular: num momento posterior, o velho, o passado, necessita do novo para persistir ("Menina de Ouro"), para não se decompor.

Os filmes de guerra de Clint remetem -mais pela visão do que pelo estilo- a um autor que não costuma citar: Samuel Fuller. Talvez porque Fuller seja um moderno, como Siegel, que toca os problemas de frente. Dizia Fuller que na guerra o único heroísmo consiste em sobreviver, algo que Clint retoma com frequência.

De certa forma, veremos todas essas questões retornarem em "Gran Torino", filme em que a irreversibilidade do tempo é posta de maneira dramática. Assim, o notável "duelo final" baseia-se numa expectativa: a do retorno à ativa do velho cauboí do "western spaghetti". Veremos como Clint faz passado e presente se fundirem com mão de mestre.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 15 de março de 2009)

5 Comments:

  • Sabe Inácio o conheci na folha, com críticas que não me chamavam tanta atenção. Lia vez ou outra. Mas depois que soube da reverência com que os críticos eletrônicos, os quais admiro muito, possuíam por ti... Até agora li as críticas dos filmes nos quais gostei - críticas suaves e delicadas. Agora estou louca pra ler as dos filmes polêmicos, descobrir o Inácio ácido. Será que existe. To indo ver.
    “Se existe uma função crítica é facilitar a cada espectador que tenha seu olhar, que olhe livremente, mas também que olhe informadamente para os filmes. É só à força de olhar que criamos um gosto, um repertório, que nos aproximamos ou até nos distanciamos dos outros.”- agora está no roll das pessoas indispensáveis no meu dia a dia. Abraços. Sobre o Clint, preciso conhecer melhor a cinematografia dele.

    By Anonymous Anonymous, at 3:29 PM  

  • confesso que me decepcionei com os últimos filmes dele, mas é inegável que ele traz uma dignidade que falta ao cinema de hoje. assisti aquele filme que ele fez na áfrica no sbt de madrugada e até hoje não consigo tirá-lo da cabeça.

    By Blogger sensei allegro, at 8:31 AM  

  • Genial o comentário sobre o "fantasma do caubói" dos Imperdoáveis. E Clint confronta passado e presente com maestria, dee formas distintas (Pontes de Madison, Sobre meninos, menina de ouro, Conquista da honra)
    Acho que desde Honktonk man tem uma mudança no Clint, algo mais introspectivo, com aquele tom de homem vivido, maduro e desiludido.

    Allegretto, vc nao curtiu os últimos filmes dele?? vai pra santa inquisição!! hehehe

    By Blogger Andre de P.Eduardo, at 2:07 PM  

  • Genialidade é fazer o complicado paracer simples.Exemplo:Bronco Billy(O melhor filme sobre circo depois dos Saltimbancos Trapalhões).

    By Blogger jose, at 4:16 PM  

  • me decepcionei com a troca e a conquista da honra pq me passaram a impressão de tentarem ser simpáticos a academia,coisa que os melhores filmes dele evitam de maneira exemplar. mas realmente o problema deve ser comigo.

    By Blogger sensei allegro, at 5:41 AM  

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