CINEASTA ALCANÇA GRANDE MOMENTO COM UMA BELA "EPIDEMIA" DE TRAMAS
INÁCIO ARAUJO
A parte dos espectadores que desconhece a tradição do filme noir não sabe o quanto é difícil seguir a emaranhada intriga de "O Falcão Maltês", por exemplo, ou de "À Beira do Abismo", que, conforme a anedota célebre, nem o roteirista (William Faulkner), nem o diretor (Howard Hawks), nem o autor do livro (Raymond Chandler) sabiam bem do que se tratava.
"Dália Negra" não chega perto disso, mas ali existem dois amigos policiais e uma loira misteriosa, um assassinato sem resolução, mortes em ação que poderiam ser, na verdade, crimes, mulheres fatais assassinadas, milionários sórdidos, política na polícia, a imprensa e suas repercussões.
É uma bela epidemia de tramas e subtramas, capazes de dar um bom filme, com mistério, ação, drama. Algo como "Los Angeles - Cidade Proibida" (1997). Para Brian De Palma, no entanto, isso parecia pouco. Pois para ele o interesse de um filme vem de alguns enigmas que o fascinam. O que é a verdade é um deles. E o que é a verdade num filme noir, onde todos se movem entre aparências, já é um problema e tanto.
Em todo caso, essa é a menor parte da questão. O que fascina De Palma é como promover o encontro entre verdade e cinema. Quando os dois coincidem? Quando uma imagem deixa de ser mera aparência para se tornar verdade?
A trama não é complexa. É apenas complicada. Uma boa parte das coisas que acontecem ali interessa muito aos personagens, mas nada a nós, espectadores. Houve um assassinato.
Trata-se de esclarecê-lo. Ponto. Sim, mas estamos em Hollywood, cidade dos sonhos, onde um bom policial precisa, a cada passo, distinguir a ilusão da realidade, a amizade da traição, o amor do interesse.
No passado, esse tipo de história nos mostrou o lado sombrio dos homens -e, com ele, um sonho americano que se revelava pesadelo. Hoje é diferente: as aparências tomaram conta de tudo. São elas que contam. Buscar a verdade é um ato de bravura, sem dúvida, mas beira a insensatez, pois desafia as leis que governam o mundo.
Isso vale para os heróis policiais, mas vale, sobretudo, para o autor de "Dália Negra", pois não existe acomodação possível para quem busca vencer a barragem das aparências que organizam o poder e o mundo. A verdade custa caro, como sabia o velho Scottie, de "Um Corpo que Cai" (de Hitchcock).
É o que descobrirá também Bucky, paralisado junto de uma escada, enquanto seu parceiro Lee tenta escapar da morte, lá em cima: uma das mais belas cenas filmadas por De Palma em muitos anos e também um desses momentos em que o diretor reencontra uma idéia clássica e a restitui ao tempo presente inteiramente nova.
É quase desnecessário falar aqui da dúzia de outros planos preciosos criados por Brian De Palma, da precisão das composições, da audácia sem-vergonha dos diálogos, do à vontade no trato do submundo (e mesmo da baixeza). Para resumir, talvez seja este o melhor, o mais profundo De Palma desde o começo dos anos 80. Nem todos verão as coisas assim, claro. Para quem gosta de cinema, "Dália Negra" será uma festa; para quem só quer saber da pipoca, um tormento.
(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 06 de outubro de 2006)
INÁCIO ARAUJO
A parte dos espectadores que desconhece a tradição do filme noir não sabe o quanto é difícil seguir a emaranhada intriga de "O Falcão Maltês", por exemplo, ou de "À Beira do Abismo", que, conforme a anedota célebre, nem o roteirista (William Faulkner), nem o diretor (Howard Hawks), nem o autor do livro (Raymond Chandler) sabiam bem do que se tratava.
"Dália Negra" não chega perto disso, mas ali existem dois amigos policiais e uma loira misteriosa, um assassinato sem resolução, mortes em ação que poderiam ser, na verdade, crimes, mulheres fatais assassinadas, milionários sórdidos, política na polícia, a imprensa e suas repercussões.
É uma bela epidemia de tramas e subtramas, capazes de dar um bom filme, com mistério, ação, drama. Algo como "Los Angeles - Cidade Proibida" (1997). Para Brian De Palma, no entanto, isso parecia pouco. Pois para ele o interesse de um filme vem de alguns enigmas que o fascinam. O que é a verdade é um deles. E o que é a verdade num filme noir, onde todos se movem entre aparências, já é um problema e tanto.
Em todo caso, essa é a menor parte da questão. O que fascina De Palma é como promover o encontro entre verdade e cinema. Quando os dois coincidem? Quando uma imagem deixa de ser mera aparência para se tornar verdade?
A trama não é complexa. É apenas complicada. Uma boa parte das coisas que acontecem ali interessa muito aos personagens, mas nada a nós, espectadores. Houve um assassinato.
Trata-se de esclarecê-lo. Ponto. Sim, mas estamos em Hollywood, cidade dos sonhos, onde um bom policial precisa, a cada passo, distinguir a ilusão da realidade, a amizade da traição, o amor do interesse.
No passado, esse tipo de história nos mostrou o lado sombrio dos homens -e, com ele, um sonho americano que se revelava pesadelo. Hoje é diferente: as aparências tomaram conta de tudo. São elas que contam. Buscar a verdade é um ato de bravura, sem dúvida, mas beira a insensatez, pois desafia as leis que governam o mundo.
Isso vale para os heróis policiais, mas vale, sobretudo, para o autor de "Dália Negra", pois não existe acomodação possível para quem busca vencer a barragem das aparências que organizam o poder e o mundo. A verdade custa caro, como sabia o velho Scottie, de "Um Corpo que Cai" (de Hitchcock).
É o que descobrirá também Bucky, paralisado junto de uma escada, enquanto seu parceiro Lee tenta escapar da morte, lá em cima: uma das mais belas cenas filmadas por De Palma em muitos anos e também um desses momentos em que o diretor reencontra uma idéia clássica e a restitui ao tempo presente inteiramente nova.
É quase desnecessário falar aqui da dúzia de outros planos preciosos criados por Brian De Palma, da precisão das composições, da audácia sem-vergonha dos diálogos, do à vontade no trato do submundo (e mesmo da baixeza). Para resumir, talvez seja este o melhor, o mais profundo De Palma desde o começo dos anos 80. Nem todos verão as coisas assim, claro. Para quem gosta de cinema, "Dália Negra" será uma festa; para quem só quer saber da pipoca, um tormento.
(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 06 de outubro de 2006)
9 Comments:
Estou voltando de férias.
Entra esse comentário sobre o Dália Negra, que me parece um filme muito, muito desprezado.
O romance eu achei chato, dispersivo, com excesso de linhas.
O DePalma pegou esse excesso de linhas e fez dele o mesmo mistério que Chandler/Faulkner/Hawks haviam construído no À Beira do Abismo.
Mas acrescentou algo mais moderno (talvez já esteja nesse filme) que é nossa descrença fundamental, hoje, em relação |às imagens. "Imagens viróticas", como já se disse a respeito do Cronenberg, isto é, que fingem ser verdadeiras mas não são (não as do Cronenberg, claro).
É de um mundo de aparências, aparências falsas, que, enquanto você procura a verdade no meio das aparências, só encontra outras aparências. Essa a questão do filme, me parece.
Ouço muita gente falar de atores inadequados e mesmo de uma Scarlett Johanson desinteressante, etc. A Scarlett, aqui, é Lana Turner em "O Destino Bate à Sua Porta", me parece. As imagens são sempre imagens que nos remetem a outras imagens, do passado, mas instauram uma dúvida sobre a verdade inclusive dessas imagens.
O filme me parece, em suma, o que há.
By Anonymous, at 9:08 PM
Eu relutei para gostar de Dália Negra na primeira assistida, mas depois li uma analise da Paisà que foi precisa.
Estou aqui para comentar sua matéria sobre Bergman na Ilustada. E agradeço pelo último paragrafo!
By Anonymous, at 5:00 AM
Olá Inácio. Sinceramente, você não acha que De Palma foi muito mais feliz nessa abordagem das "aparências que são aparências" em outros filmes? Dublê de Corpo, por exemplo...eu gosto de cinema, não quero só saber de pipoca. Mas esse filme eu não engoli, sobretudo as atuações de Josh Hartnett e Hillary Swank, que ficou meio canastra. Um abraço
By Anonymous, at 6:41 AM
Só sei que troco qualquer "obra prima" de Palma ("Dália Negra"???!!!) por qualquer filme para a TV de Bergman... Grandíssima perda!
Mas talvez eu devesse redescobrir de Palma...
By Anonymous, at 9:54 AM
Filmão, dos melhores do diretor.
By A.C., at 11:07 AM
Acho que todos os personagens são um pouco afetados de início, para no decorrer do filme irem desmontando as máscaras.
Lindo!
By Ivan, at 1:27 PM
Há uma coisa interessante: se a gente olhar o que o Vladimir Safatle fala, por exemplo, do Mulholand Drive, que é fantástico, verá que são cineastas com preocupações parecidas.
Me parece estranho que na Dália se fala muito dos atores. Mas no Mulholand, e em outros filmes do Lynch a gente vê muito esse tom de estranhamento cultivado, como se os atores fossem ruins, afetados, e tal.
Agora, se um filme é melhor e outro pior... Não sei, aí vai de gosto.
By Anonymous, at 6:40 PM
olá, inácio.
me permita a mudança de assunto, por favor.
eu sou o bernardo, teu aluno da classe de 2006, e aproveito teu blog pra te deixar os parabéns pela cobertura da folha nos últimos dois tristes dias. em particular, brilhante teu texto de hoje sobre antonioni. uma aula. isso sim é jornalismo. parabéns.
grande abraço!
By Anonymous, at 6:31 AM
Inacio, acho que isto do ator tem muito a ver com a percepção que o espectador faz dos filmes. O filme do De Palma é visto antes de mais nada como um filme de genero e portanto cobram dele que se molde a tal ditadura idiota do crivel que infesta a percepção sobre cinema, já o Lynch não é visto primeiramente como filme de genero, então ele é autorizado a estilizar mais.
By Anonymous, at 1:44 PM
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