"HOMEM URSO" VÊ A NATUREZA CAÓTICA
INÁCIO ARAUJO
Em sua juventude, Werner Herzog foi a pé da Alemanha até Paris, numa espécie de penitência pelo restabelecimento da historiadora Lotte Eisner. Ninguém estranhará que um homem capaz disso tenha se interessado por Timothy Treadwell, o homem que optou por viver entre os ursos do Alasca durante os meses de verão, todos os anos. É a ele que dedicou seu "O Homem Urso". Treadwell foi, em certo momento, uma espécie de celebridade nos Estados Unidos, por seu ativismo pela preservação do urso polar, que defendia solitariamente dos caçadores. Mas era mais do que isso. Treadwell registrou suas expedições em vídeo, e, nelas, o que se vê é bem mais do que um ecologista: é alguém que se identificou profundamente com os ursos, que os tratava por amigos, que lhes dava nomes, que procurava compreendê-los. Até que em 2003 morreu, vítima de um urso.
Lembremos que Herzog desenvolveu uma notável obra de ficcionista, entre os final dos anos 60 e meados dos 70 do século passado. Quando essa obra começou a esgotar, Herzog encontrou no documentário um refúgio seguro. Alguns de seus personagens, do ator Klaus Kinski a Treadwell, têm todas as vantagens de um personagem de ficção, mesmo que não o sejam. Em suma, por meio deles, Herzog continua a manifestar seu pasmo diante do mundo e, sobretudo, diante da natureza que ele vê caótica e conflitiva. Ele mesmo faz esse comentário ao longo do filme: Treadwell observa a natureza como algo sagrado, uma entidade ordenada e superior - em oposição ao mundo precário dos homens. Parece até que Treadwell é o alemão, não Herzog.
Mas Herzog é um hábil narrador, e essa é a virtude que torna seu filme bastante especial. Pois para ele se trata, antes de mais nada, de entender quem é Treadwell. Em vez de preencher os sentidos rapidamente, de se pôr contra ou favor dele, Herzog a cada rolo promove uma espécie de reviravolta, acrescentando novas facetas e ampliando a complexidade de Treadwell. Podemos vê-lo sucessivamente como homem simples, despojado, ecologista, cineasta, amante de ursos, homem vaidoso, menino de ouro, drogado, problemático.
Quase todas essas facetas trazem, em comum, uma rejeição da convivência humana e, em troca, uma exaltada adesão ao mundo natural, em particular o dos ursos, aos quais atribui quase uma civilização, porém perfeita, "natural", enquanto a dos humanos seria um paradigma de precariedade. A fascinante investigação de Herzog tem o mérito de colocar o espectador em liberdade diante das inúmeras facetas de Treadwell, num filme que se serve, na maior parte do tempo, das imagens criadas pelo próprio Treadwell. Por meio dele, manifesta-se esse estranhamento do mundo que Werner Herzog tanto cultiva, essas situações aparentemente sem explicação (e profundamente, talvez, também), esses seres que buscam o limite da existência, para os quais muito mais importante do que o resultado é a trajetória, muito mais relevante do que a descoberta é a busca.
Talvez sejam eles que mantenham o mundo vivo. Em todo caso, isso é certo, são eles que mantêm Herzog em ação.
(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 02 de junho de 2006)
INÁCIO ARAUJO
Em sua juventude, Werner Herzog foi a pé da Alemanha até Paris, numa espécie de penitência pelo restabelecimento da historiadora Lotte Eisner. Ninguém estranhará que um homem capaz disso tenha se interessado por Timothy Treadwell, o homem que optou por viver entre os ursos do Alasca durante os meses de verão, todos os anos. É a ele que dedicou seu "O Homem Urso". Treadwell foi, em certo momento, uma espécie de celebridade nos Estados Unidos, por seu ativismo pela preservação do urso polar, que defendia solitariamente dos caçadores. Mas era mais do que isso. Treadwell registrou suas expedições em vídeo, e, nelas, o que se vê é bem mais do que um ecologista: é alguém que se identificou profundamente com os ursos, que os tratava por amigos, que lhes dava nomes, que procurava compreendê-los. Até que em 2003 morreu, vítima de um urso.
Lembremos que Herzog desenvolveu uma notável obra de ficcionista, entre os final dos anos 60 e meados dos 70 do século passado. Quando essa obra começou a esgotar, Herzog encontrou no documentário um refúgio seguro. Alguns de seus personagens, do ator Klaus Kinski a Treadwell, têm todas as vantagens de um personagem de ficção, mesmo que não o sejam. Em suma, por meio deles, Herzog continua a manifestar seu pasmo diante do mundo e, sobretudo, diante da natureza que ele vê caótica e conflitiva. Ele mesmo faz esse comentário ao longo do filme: Treadwell observa a natureza como algo sagrado, uma entidade ordenada e superior - em oposição ao mundo precário dos homens. Parece até que Treadwell é o alemão, não Herzog.
Mas Herzog é um hábil narrador, e essa é a virtude que torna seu filme bastante especial. Pois para ele se trata, antes de mais nada, de entender quem é Treadwell. Em vez de preencher os sentidos rapidamente, de se pôr contra ou favor dele, Herzog a cada rolo promove uma espécie de reviravolta, acrescentando novas facetas e ampliando a complexidade de Treadwell. Podemos vê-lo sucessivamente como homem simples, despojado, ecologista, cineasta, amante de ursos, homem vaidoso, menino de ouro, drogado, problemático.
Quase todas essas facetas trazem, em comum, uma rejeição da convivência humana e, em troca, uma exaltada adesão ao mundo natural, em particular o dos ursos, aos quais atribui quase uma civilização, porém perfeita, "natural", enquanto a dos humanos seria um paradigma de precariedade. A fascinante investigação de Herzog tem o mérito de colocar o espectador em liberdade diante das inúmeras facetas de Treadwell, num filme que se serve, na maior parte do tempo, das imagens criadas pelo próprio Treadwell. Por meio dele, manifesta-se esse estranhamento do mundo que Werner Herzog tanto cultiva, essas situações aparentemente sem explicação (e profundamente, talvez, também), esses seres que buscam o limite da existência, para os quais muito mais importante do que o resultado é a trajetória, muito mais relevante do que a descoberta é a busca.
Talvez sejam eles que mantenham o mundo vivo. Em todo caso, isso é certo, são eles que mantêm Herzog em ação.
(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 02 de junho de 2006)
3 Comments:
Já tinha lido esse belo texto na Folha. De qualquer forma, foi uma ótima maneira de relembrá-lo. "Caminhando no Gelo", citado no começo do texto, foi o último livro que li. É genial.
By Wolf, at 10:59 AM
Também gostei muito do filme. Mas creio que o urso que ele defenda em especial não seja o polar, aquele branco, mas o urso cinzento (o grizzly do título) ou urso-do-Alaska.
Saudações,
João Claudio
By Anonymous, at 5:25 AM
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By Jean-Philip, at 11:15 AM
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