MANN EM DISCUSSÃO
INÁCIO ARAUJO
No "Mais!" da Folha, uma entrevista com Bento Prado Jr., que acaba de morrer. Ele diz a horas tantas que, em filosofia, o teu melhor amigo é o teu pior inimigo.
Quer dizer, em linhas gerais, que só se aprende com a discordância, pela discordândia. Como eu até hoje não compreendi porque muitos amigos acham o Michael Mann o máximo, o Bruno Andrade escreveu o texto abaixo, que eu agradeço e partilho. O Bruno também anda odiando o Scorsese e aproveita para uma espinafrada.
CARTA DE BRUNO ANDRADE
Mann tem um problema crucial de recepção crítica, aqui no Brasil (mas não é só aqui não): o esteticismo impressionista e caipira da nossa crítica não ajuda muito a enxergar as inúmeras qualidades de uma arte que é bem mais discreta e zelosa, e bem menos espalhafatosa e formalista, do que andam pintando por aí. É uma arte até bastante literária, de dramaturgia cênica mesmo, só que não nos mesmos termos daquilo que nos acostumamos a ver e entender como 'dramaturgia cênica' com os grandes mestres do passado - Lang, Walsh, Hitchcock, Losey, Dreyer, Preminger... E algo muito complicado o separa também dos mestres saídos das escolas de cinema - Carpenter, De Palma, Coppola -, porque o ofício dele tem muito menos a ver com a emergência de um diálogo entre o cinema e as tecnologias analógicas (como foi nos anos 80 com DO FUNDO DO CORAÇÃO, BLOW OUT e THEY LIVE) e sim com uma nova situação que tem menos a ver com apenas o digital e muito mais a ver com as fraturas da civilização dos últimos 15, 10 anos (que é o que filmes como O INFORMANTE e MIAMI VICE põem em discussão).
Pessoalmente, como gancho ou dica, dou a seguinte: Mann pega o mito de Fausto (O INFORMANTE é sobre isso, COLATERAL é sobre isso, ÚLTIMO DOS MOICANOS e THIEF também) e o leva para uma direção bem oposta da de um De Palma, para ficar só num exemplo.
Agora, sobre Scorsese: pessoalmente - ênfase nesse 'pessoalmente', porque pode ser apenas uma dificuldade da minha visão rural, catarinense das coisas com a visão Nova Yorkina, ultraurbana de um Scorsese - não vejo nada que destaque muito os filmes recentes dele (e particularmente OS INFILTRADOS) dos filmes que um Gordon Douglas fez no final dos anos 60 - particularmente os policiais com o Frank Sinatra. As resoluções formais, extremamente confusas e atrapalhadas, não vão muito além de um maneirismo capenga e afobado (para não dizer caduco), uma profusão de efeitos e outras afetações (por exemplo, os Xs de OS INFILTRADOS, que apenas evidenciam como o Scorsese hoje é incapaz por si só de pensar uma geometria coerente com as razões dramáticas do seu filme - coisa que um Siegel, por exemplo, tirava de letra com um DIRTY HARRY, um MADIGAN ou um THE KILLERS -, e para compensar essa preguiça precisa pegar emprestado expedientes de cineastas que ele adora - no caso dos Xs, é Hawks e SCARFACE obviamente -, o que é bem diferente do processo canibalesco/questionador de um De Palma ou um Todd Haynes)... E a utilização desta profusão de efeitos não tem a ver com o excesso, por exemplo, em um Chabrol ou um Fassbinder, que trabalham com narrativas e dramaturgias, mas jogam estas para escanteio ou simplesmente as sabotam (ao menos num ROLETA CHINESA ou num A TEIA DE CHOCOLATE) quando precisam ir direto ao que interessa à arte fundamentalmente maneirista que praticam; já o que Scorsese vem tentando é uma arte puramente dramática, bastante teatral mesmo (o que em si não constitui nenhum problema - vide Renoir, Losey, Ford, Straub, Mizoguchi...), o que nunca foi o seu forte - ao menos não nos manifestos punks como O REI DA COMÉDIA, DEPOIS DE HORAS, A COR DO DINHEIRO e GOODFELLAS.
...
É um belo texto, e aproveito para pedir ao Bruno alguns esclarecimentos. Por exemplo:
1) quais são as fraturas recentes da civilização a que ele se refere e de que o MM daria conta?;
2) dá para destrinchar um pouco mais o que seria o diálogo entre o cinema de mestres citados na carta e as tecnologias digitais? ou a relação entre o MM e as tecnologias analógicas?
Enfim, acho que essas explicitações me ajudariam muito.
O debate está aberto.
INÁCIO ARAUJO
No "Mais!" da Folha, uma entrevista com Bento Prado Jr., que acaba de morrer. Ele diz a horas tantas que, em filosofia, o teu melhor amigo é o teu pior inimigo.
Quer dizer, em linhas gerais, que só se aprende com a discordância, pela discordândia. Como eu até hoje não compreendi porque muitos amigos acham o Michael Mann o máximo, o Bruno Andrade escreveu o texto abaixo, que eu agradeço e partilho. O Bruno também anda odiando o Scorsese e aproveita para uma espinafrada.
CARTA DE BRUNO ANDRADE
Mann tem um problema crucial de recepção crítica, aqui no Brasil (mas não é só aqui não): o esteticismo impressionista e caipira da nossa crítica não ajuda muito a enxergar as inúmeras qualidades de uma arte que é bem mais discreta e zelosa, e bem menos espalhafatosa e formalista, do que andam pintando por aí. É uma arte até bastante literária, de dramaturgia cênica mesmo, só que não nos mesmos termos daquilo que nos acostumamos a ver e entender como 'dramaturgia cênica' com os grandes mestres do passado - Lang, Walsh, Hitchcock, Losey, Dreyer, Preminger... E algo muito complicado o separa também dos mestres saídos das escolas de cinema - Carpenter, De Palma, Coppola -, porque o ofício dele tem muito menos a ver com a emergência de um diálogo entre o cinema e as tecnologias analógicas (como foi nos anos 80 com DO FUNDO DO CORAÇÃO, BLOW OUT e THEY LIVE) e sim com uma nova situação que tem menos a ver com apenas o digital e muito mais a ver com as fraturas da civilização dos últimos 15, 10 anos (que é o que filmes como O INFORMANTE e MIAMI VICE põem em discussão).
Pessoalmente, como gancho ou dica, dou a seguinte: Mann pega o mito de Fausto (O INFORMANTE é sobre isso, COLATERAL é sobre isso, ÚLTIMO DOS MOICANOS e THIEF também) e o leva para uma direção bem oposta da de um De Palma, para ficar só num exemplo.
Agora, sobre Scorsese: pessoalmente - ênfase nesse 'pessoalmente', porque pode ser apenas uma dificuldade da minha visão rural, catarinense das coisas com a visão Nova Yorkina, ultraurbana de um Scorsese - não vejo nada que destaque muito os filmes recentes dele (e particularmente OS INFILTRADOS) dos filmes que um Gordon Douglas fez no final dos anos 60 - particularmente os policiais com o Frank Sinatra. As resoluções formais, extremamente confusas e atrapalhadas, não vão muito além de um maneirismo capenga e afobado (para não dizer caduco), uma profusão de efeitos e outras afetações (por exemplo, os Xs de OS INFILTRADOS, que apenas evidenciam como o Scorsese hoje é incapaz por si só de pensar uma geometria coerente com as razões dramáticas do seu filme - coisa que um Siegel, por exemplo, tirava de letra com um DIRTY HARRY, um MADIGAN ou um THE KILLERS -, e para compensar essa preguiça precisa pegar emprestado expedientes de cineastas que ele adora - no caso dos Xs, é Hawks e SCARFACE obviamente -, o que é bem diferente do processo canibalesco/questionador de um De Palma ou um Todd Haynes)... E a utilização desta profusão de efeitos não tem a ver com o excesso, por exemplo, em um Chabrol ou um Fassbinder, que trabalham com narrativas e dramaturgias, mas jogam estas para escanteio ou simplesmente as sabotam (ao menos num ROLETA CHINESA ou num A TEIA DE CHOCOLATE) quando precisam ir direto ao que interessa à arte fundamentalmente maneirista que praticam; já o que Scorsese vem tentando é uma arte puramente dramática, bastante teatral mesmo (o que em si não constitui nenhum problema - vide Renoir, Losey, Ford, Straub, Mizoguchi...), o que nunca foi o seu forte - ao menos não nos manifestos punks como O REI DA COMÉDIA, DEPOIS DE HORAS, A COR DO DINHEIRO e GOODFELLAS.
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É um belo texto, e aproveito para pedir ao Bruno alguns esclarecimentos. Por exemplo:
1) quais são as fraturas recentes da civilização a que ele se refere e de que o MM daria conta?;
2) dá para destrinchar um pouco mais o que seria o diálogo entre o cinema de mestres citados na carta e as tecnologias digitais? ou a relação entre o MM e as tecnologias analógicas?
Enfim, acho que essas explicitações me ajudariam muito.
O debate está aberto.