Canto do Inácio

Saturday, June 28, 2008

UM DEMÔNIO À PORTUGUESA
INÁCIO ARAUJO


É quase inimaginável que o gerente de uma sorveteria em Portugal dê um bom personagem.

Mas é isso que acontece em "A Comédia de Deus", de João César Monteiro.

Mais do que um bom personagem, João de Deus é uma figura mefistofélica, um Nosferatu dos gelados, um diabo abusado e sedutor.

Enfim, "A Comédia" é uma surpresa lusitana, em que o próprio Monteiro faz o personagem central, muito diferente dos filmes de Manoel de Oliveira, mas igualmente digno de atenção.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 24 de abril de 1998)

Friday, June 20, 2008

"O PODEROSO CHEFÃO" É SÍNTESE DA AMÉRICA
INÁCIO ARAUJO


As histórias que cercam "O Poderoso Chefão" são tão interessantes quanto o filme. Por exemplo: o estúdio não queria Al Pacino, um ator desconhecido, no papel de Michael Corleone. E também não confiava em Francis F. Coppola, de tal modo que, durante ao menos duas semanas, havia um diretor a seu lado: caso fosse despedido, o outro já saberia por onde começar.

O espantoso não é que isso tenha acontecido, mas que tenha acontecido no que é possivelmente o maior filme do cinema americano nos últimos 40 anos. Coppola fez um filme que é ao mesmo tempo épico e íntimo, criminal e familiar. É o que se pode chamar de uma autêntica saga.

Estamos no pós-guerra e o reino de Don Corleone encontra-se ameaçado. É simples assim. Mas disso Coppola (a partir do livro de Mario Puzo) fez um episódio lendário, que fala de valentia, gênio, imigração, pertencimento, corrupção, morte. Enfim, da América, sua vitalidade e mazelas.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 20 de junho de 2008)

Friday, June 13, 2008

ARTE FICA SUJEITA A CAPRICHOS DO MERCADO EM FILME
INÁCIO ARAUJO


"Vontade Indômita", com seu título de filme de aventura, é um insólito trabalho sobre a criatividade de um arquiteto e sua batalha para preservá-la de alterações.

Segundo consta, o modelo do arquiteto representado por Gary Cooper foi Frank Lloyd Wright, mas o filme dirigido por King Vidor em 1949, como bom veículo hollywoodiano, terá conflitos amorosos em seu centro, processos, interferência da imprensa.

Tudo isso existe, essencialmente, para salvar o lado comercial da empreitada. Na real, o que importa é a luta do arquiteto, levada às últimas conseqüências para que seu trabalho não perdesse a integridade.

Disso entende quem trabalha no cinema (arte, como a arquitetura, sujeita aos caprichos do mercado) e, sobretudo, em Hollywood. Daí talvez venha a convicção que faz de "Vontade" um filme em muitos aspectos memoráveis - embora seja tido em geral como um Vidor menor.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 02 de março de 2007)

Monday, June 09, 2008

UMA AULA DE FAROESTE PELO MESTRE KING VIDOR
INÁCIO ARAUJO


Em uma das cenas de Homem Sem Rumo, Kirk Douglas faz uma demonstração de malabarismo com o revólver para seu jovem escudeiro, Texas Kid. O Kid assiste a tudo aquilo admirado, enquanto o espectador vê com desconfiança o exibicionismo vulgar de Kirk. Por alguns segundos, porém: em um instante, ele interrompe o gesto, quebra o encantamento em que está mergulhado o garoto e arremata com uma frase definitiva:

"Rodar a arma não vai salvar a sua vida. Só atirar".

A seqüência – bela porque trabalhada em um limite extremamente perigoso – é ao mesmo tempo uma postulação estética: não é o efeito que vale, mas a objetividade; não é a grandiloqüência, mas o vigor. Elementos que se encontram com vigor na obra de King Vidor e que poderemos rever ainda uma vez neste que é um dos melhores "westerns" dos anos 50 (um período de fausto do gênero). Mas, como toda posição estética, também esta implica uma renúncia: chegar ao ponto, contar sua história, significa igualmente abrir mão da "arte", da "profundidade", o que Vidor faz sem hesitação.

Nas mãos de um cineasta menos seguro,o roteiro de Borden Chase e D. D. Beauchamp poderia sem dificuldade tornar-se o estudo do caráter de um homem que, embora apto a enfrentar as áridas condições de vida do Oeste, prefere deslocar-se, evitar as barreiras que surgem à sua frente; poderia até se converter em uma ingênua parábola pacifista.

Nada disso com Homem Sem Rumo: ao contar a história do homem errante que encontra o jovem Texas Kid num trem e o inicia na vida, King Vidor opta por uma perfeita sujeição do significado à história. Talvez por isso seja possível discernir tantos sentidos possíveis no filme. Mesmo se sabemos de Vidor – por todo seu passado – que é antes de mais nada um individualista, essa posição não se mostra genericamente, mas de forma pontual: há que ver como Dempsey Rae (Kirk Douglas) saca a arma rápido como um relâmpago contra seu próprio amigo ou como – de modo igualmente fulminante – abre sua camisa para mostrar as chagas causadas pelo arame farpado. Há que ver cada imagem, seguir cada passo do homem sem rumo para entender-lhe o passado e justificar o presente: desmontar um destino e remontá-lo diante de nossos olhos.

Em outras palavras, a estética que prega King Vidor sustenta-se da capacidade de criar vida através do acúmulo de um sem-número de pequenos detalhes que isolam o personagem da multidão (da Turba, título de seu clássico filme mudo) e fazem desta vida – ao inicio como ao final – um perfeito mistério. Porque entre tantas coisas que nos diz esse filme, onde a beleza não raro deriva em perversão (como no caso da proprietária de gado) e a violência sem poesia, podemos isolar em Homem Sem Rumo a idéia de um perfeito mistério do destino humano: absolutamente pessoal, ele é, por paradoxo, comum a todos os seres. Tangível, na medida em que o visualizamos, ele permanece no entanto insondável: para além da Justiça e da Injustiça, da Felicidade ou da Infelicidade, a vida é a um só tempo tautologia (que se afirma sendo) e labirinto (perda, ausência de rumo).

Um grande filme, clássico pelo desenvolvimento da intriga, moderno pela seca elegância, eterno pela magistral alternância de tempos fortes e fracos, pela orquestração de elementos que vão desde a excepcional presença de Kirk Douglas até a secura de uma decoração onde não se vê traço de azul (e portanto de tranqüilidade). Cada plano tem uma idéia, mas ele não se impõe como tal, não faz questão de ser percebida como raciocínio, mas como vida.

A arte de King Vidor talvez seja um pouco como o corpo de Dempsey Rae (Kirk Douglas): algo que esconde com cuidado e que, se mostra, o faz apenas por completa necessidade. O filme que passará hoje à noite na TVS é um desses que se pode ver, rever, rever de novo e, se possível, gravar: não é todos os dias que se assiste a uma aula de cinema.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 27 de abril de 1983)

Sunday, June 08, 2008

COWBOY DE KING VIDOR CONDUZ UM DOS GRANDES FAROESTES DA HISTÓRIA
INÁCIO ARAUJO


"Homem sem Rumo" é, basicamente, a história de um cowboy que foge do arame farpado. Todos sabemos que os cowboys fogem da civilização, rumo a uma vida mais livre. É uma das convenções centrais do faroeste. Mas Kirk Douglas (ou Dempsey Rae), aqui, é um pouco mais radical: é do arame farpado que ele foge.

E não pode haver sinal mais agressivo da chegada da civilização que o arame farpado, que designa o direito de propriedade. Quem transgredir, avançando sobre domínios do outro, vai se ferir seriamente.

Isso posto, a tendência de Dempsey é se retirar. Não fugir, pois é um exímio atirador. É também um "bon vivant", aprecia música e mulheres. A diferença entre fugir e retirar-se, no entanto, pode ser diminuta.

Existe uma facilidade em sua atitude básica -botar sua sela num trem e partir tão logo o arame farpado aparece.

Por isso ele é o "homem sem estrela" do título original: não tem estrela a seguir, não tem rumo. Ora, o rumo parece se mostrar na pessoa de Reed Bowman (Jeanne Crain), uma proprietária de gado que chega do Leste trazendo o espírito predatório: seu negócio é usar as terras do governo como pasto, devastá-las em poucos anos, constituir um rebanho enorme, enriquecer e retirar-se.

Ora, sabemos, não é para isso que o Oeste foi criado. E sim para que a terra fosse produtiva, gerasse trabalho e riqueza, geração após geração. O capitalismo predatório não é coisa que um americano aceite facilmente. Menos ainda um americano liberal, como King Vidor.

É em torno disso - como da atitude que Dempsey Rae terá quanto ao arame farpado - que gira a última obra-prima de King Vidor. Filme modesto, em termos de produção, que precede as superproduções ("Guerra e Paz" e "Salomão e a Rainha do Sabá") com que encerraria a carreira, mas às quais é superior em vigor e invenção. "Homem sem Rumo" é um dos grandes faroestes da história.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 08 de junho de 2008)

Thursday, June 05, 2008

BOÇALIDADE GUIA CINEMA DOS IRMÃOS FARRELLY
INÁCIO ARAUJO


Sem a boçalidade não existiria o cinema dos irmãos Farrelly. Ela é seu fundamento. Por isso, certa dificuldade em compreender suas comédias arrasadoras: todos nós somos, em algum ponto, um tanto boçais, de maneira que esses filmes surpreendem justamente porque parecem contrariar nossa inteligência, mas é a nossa boçalidade que atacam impiedosamente.

Vejamos se descrevendo a situação de "O Amor É Cego" as coisas parecem mais claras. Hal cresceu acreditando que só deve transar com mulheres perfeitas. Ele é chato, gordo e razoavelmente feio. Está fora dos padrões, em suma. Só se dá mal.

Um dia, ele passa a sair com uma garota gordíssima e feíssima, mas a vê como um esplendor de beleza e tudo mais. À ordem idiota de só se contentar com "o melhor" (feminino) responde outra, o ditado segundo o qual quem ama o feio bonito lhe parece. Os Farrelly botam as duas besteiras para se chocar, e do choque nasce a comédia - e a luz.

(texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 05 de junho de 2008)